Hoje, quero compartilhar com vocês as experiências que tive ao assistir, em Registro-SP, no Teatro Caixa Preta, a peça “Sobre Viver Enquanto Se Morre”¹ da Cia. Pulso. Uma dramaturgia totalmente original, desenvolvida pelo próprio grupo de teatro durante a pandemia. A sua narrativa toca na dor das perdas de tantas pessoas que morreram na pandemia, assim como busca expressar a perda de experiências, e de forma cuidadosa vai nos conduzindo rumo a esperança, de um corpo que sobreviveu, de um corpo vivo!
De forma extremamente poética, o corpo pulsante dos atores dá vida às dores e alegrias de permanecer em movimento, enfrentando todas as tentativas de fazer a vida não ser paralisada nos sonhos, no que faz a vida humana ser repleta de memórias, de aprendizados e de transmissão. Com trechos do belo livro “Ideias para adiar o fim do mundo” de Ailton Krenak, o grupo intercala a importância da memória, relembrando as perdas e angústias que marcaram de forma coletiva a pandemia do COVID19.
A peça é uma memória viva articulada como novas possibilidades de elaborarmos algumas vivências da pandemia que ainda tem matado pessoas e cujos desdobramentos das perdas diversas, de pessoas queridas, de empregos e rendas, ainda é algo que estamos tendo que lidar ao perceber o aumento da pobreza e o aumento da violência nos diversos espaços coletivos. Além disso, a peça provoca uma movimentação interna e externa, e intervém com o movimento reflexivo convocando todos ao prazer da partilha e de certa forma do brincar.
Ao assistir lembrei de como no texto de Freud “O escritor e a fantasia” (1908/2015), ele nos permite observar o modo como a escrita literária permite que na história ficcional sejam abordados conteúdos que quando abordados na realidade não trazem prazer, mas no jogo de fantasia da história as emoções dolorosas são acionadas com o amortecedor da linguagem poética, fazendo com que ressignifiquemos de um jeito diferente as dores despertadas.
É como ouvir a música Rosa de Hiroshima interpretada por Ney Matogrosso, na qual a interpretação permitem ouvir a terrível história contada na música sobre o sofrimento extremo das pessoas que foram vítimas da bomba de Hiroshima, de um jeito suportável, que só a arte nos permite vivenciar. Assim foi, relembrar momentos da pandemia, medos, sensações despertadas pelos atores e, por fim, um final esperançoso que nos provoca a pensar “a deixar o peso das respostas que não temos”, seguindo com a abertura para novas indagações que nos mobilize para novas experiências...
Freud sempre buscou um diálogo com a arte, por entender que ela vem antes da psicanálise, e que a arte sempre em algo a ensinar sobre as questões da humanidade, sendo “por meio da obra literária que vem a libertação das tensões de nossa pisque. E talvez contribua para isso, em não pequena medida, o fato que o escritor nos permite desfrutar nossas próprias fantasias sem qualquer recriminação e sem pudor” (1908/2015, p.338).
Neste texto, Freud fala sobre a importância do fantasiar e explica que quando criança temos o recurso do brincar que permite expressar nossa criatividade, imaginando vários cenários, sendo comum algumas brincadeiras nas quais as crianças brincam imaginando que são adultas e vão criando problemas e soluções. Esse processo é muito rico para que elas possam exercer sua criatividade e elaborar suas vivências. Ele também destaca que as crianças não são preocupadas em esconder suas brincadeiras imaginárias, porém, quando chegam na fase adulta, a imaginação da brincadeira vira a fantasia que muitos adultos tentam negar e esconder, talvez por acharem sem sentido ou inapropriado, achando que ninguém nunca pensou algo assim. Conforme Freud, “desejos não satisfeitos são a força motrizes das fantasias, e cada fantasia é uma realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória”, além disso, estas fantasias podem mudar conforme os momentos da vida.
Freud destaca que a fantasia é um recurso para identificarmos nossos desejos, sabemos que tem desejos que são possíveis de serem realizados e outros que preferimos que permaneçam na fantasia. Além das fantasias, temos outra forma psíquica de realizar alguns sonhos, ela se dá a partir dos sonhos diurnos, mas sobre isso falarei na próxima coluna...
Escrito por Michele Gouveia é Psicanalista, Psicóloga Clínica e Consultora de Carreira, mestre em Psicologia Social e Especialista Clínica em Psicanálise e Linguagem. E-mail: michelegouveia.psi@gmail.com
Inquietações a partir da peça Sobre Viver Enquanto Se Morre da Cia Pulso |
Referências:
¹ Ficha Técnica: Concepção e atuação: José Victor Magalhães e Rafael Rizzieri, Dramaturgia: Rafael Rizzieri, Artista colaboradora: Kenia Dias, Trilha sonora e música ao vivo: Harison Rodrigues, Assessoria de iluminação: Olivia Munhoz, Técnico de palco: Erick Santos, Produção: José Victor Magalhães, Arte gráfica e ilustrações: Thaís Pinheiro, Fotos: Victor Yagyu.
²FREUD,S. O escritor e a fantasia. In. Obras completas, volume 8: O delírio e os sonhos na Gradiva, Análise da fobia de um garoto de cinco anos e outros textos (1906- 1909). São Paulo: Companhia das Letras, 2015b. p. 325-338.