Resistir para não sucumbir diante de expectativas irreais

Resistir para não sucumbir diante de expectativas irreais




Tudo o que quer me dar
É demais
É pesado
Não há paz



Tudo o que quer de mim
Irreais
Expectativas
Desleais

Trecho da canção “Boa sorte” de Ben Harper e Vanessa da Mata




A música “Boa Sorte” cantada por Vanessa da Mata e Bem Harper, fala sobre quando uma relação chegou ao fim, com a clareza do que não se quer mais. Essa música faz pensar sobre quando em algum momento a relação é percebida sempre marcada pelo sentimento de falta de paz, esgotamento de cobranças constantes, sendo sempre colocado como insuficiente e tendo que realizar esforços grandes para sustentar uma relação.

A primeira vez que percebi essa música foi relatada para exemplificar um caso de relação de trabalho adoecedora, na qual alguns envolvidos conseguiram sair a tempo de se reconhecer em seus interesses, valores, prazeres, necessidades e limites físicos e psíquicos.

A situação relatada pelos trabalhadores me fez pensar em uma situação metafórica: imagine que uma pessoa quer ser malabarista de circo, e ao buscar aprender, nas suas primeiras aulas em vez de ele primeiro aprender a equilibrar as laranjas, foi colocado para começar a aprender já no palco com laranjas na corda bamba. Ao questionar se ele pode começar uma coisa de cada vez como acontece com alguns outros artistas, ele é informado que terá que aprender tudo junto, pois não há mais tempo para aprender por etapa. Importante salientar que não se trata de uma nova regra, apenas a história do artista que caiu no momento em que decidiram arriscar uma nova forma de aprendizagem que poderia ser boa para o circo.

Esta metáfora é uma forma de ajudar a pensar que quando somos cobrados para fazer coisas em ritmos que desconsideram o nosso processo de aprendizagem ou mesmo a nossa organização do trabalho, isso faz com que algumas experiências tão desejadas se tornem muito aversivas, pois, somos lançados no impossível do trabalho, em meio a expectativas que sentimos com irreais. Nesse caldo, alguns poucos conseguem suportar o teste de ferro. O que salva a percepção do trabalhador nessas condições é o relato de surpresa dos colegas ou mesmo as altas taxas de rotatividade, que de alguma forma evidenciam que ninguém fica naquele trabalho. Muitas vezes são situações extremas no trabalho, que envolvem um alto índice de afastamentos ou pedidos de demissão, o que leva essas empresas a rever suas estratégias de organização do trabalho.

O psicanalista e psiquiatra Dejours, autor do livro “A loucura do trabalho”, deixa claro que todo o trabalho é carregado de prazer e dor, porém, o que mais gera sofrimento no trabalho é a tentativa de controlar, detalhadamente, a organização do trabalho (ritmo, ordem, tempo e atividade) sem considerar a possibilidade da pessoa encontrar seu ritmo, seu jeito de realizar e organizar a tarefa, sem espaço para criar soluções o trabalho fica restrito, sem aprendizado, trocas e melhorias, o trabalho vai ficando mecânico e sem aspecto que marque a singularidade no seu fazer.

Assim, ficar recorrentemente imerso em uma relação em que as expectativas irreais são lançadas, faz com que a ideia de insuficiência cresça, podendo desencadear sentimentos depreciativos, uma vida no automático, para atender essas expectativas e ir se afastando do que realmente faz sentido, da percepção de suas emoções comum em casos de despersonalização. Estes sintomas são comuns na síndrome de burnout que se refere a uma exaustão extrema de esgotamento físico e psiquíco desencadeados pelo trabalho, mas não nos esqueçamos que para quem cuida de pessoas dentro do ambiente familiar, este trabalho diante de alguém que está com dificuldade de compreender certos limites ou necessidades do cuidador, pode gerar estes quadros se não conseguir estabelecer certos limites do cuidado a fim de, também, poder se cuidar. Nestes casos, a rede de apoio (familiares, amigos, vizinhos etc) ou ajuda profissional é fundamental para ajudar a pessoa cuidadora a perceber seus próprios limites.

Quando relações amorosas ou de amizade passam por mudanças de comportamentos em que se predomina a forma como o outro acha que temos que ser, que nos cobra para sermos outra coisa que não nos identificamos, quando enxergam como defeitos a maior parte das características que gostamos, porém, são respeitadas e compreendidas por outras pessoas que reconhecemos que nos amam, então, é necessário reavaliar as expectativas de ambos. Caso ainda exista a possibilidade de cada um ser o que é, sem ultrapassar os limites do outro, o caminho será por meio da aceitação das diferenças e criando apoio mútuo. Quando não se vê mais possibilidades de acordos, nestes casos o “Boa sorte”, “acabou”, também pode ser uma das soluções possíveis.



Escrito por Michele Gouveia é Psicanalista, Psicóloga Clínica e Consultora de Carreira, mestre em Psicologia Social e Especialista Clínica em Psicanálise e Linguagem pela PUC/SP. site: https://michelegouveia27.wixsite.com/michelegouveia

(Direitos Reservados. A Autora autoriza a transcrição total ou parcial deste texto com a devida citação dos créditos)

 


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