O início, o fim, o meio O início, o fim, o meio
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O início, o fim, o meio

Semana passada, um querido amigo despediu-se de sua mãe. Conheço-a há mais de 20 anos; sempre muito amada, mulher forte, corajosa. Como disse meu amigo, ela teria odiado seu velório: queria música, queria dança, queria alegria. Penso que meu pai também teria odiado o dele: odiaria a roupa social, com certeza teria preferido a calça jeans e a camiseta de banda de rock.

O início, o fim, o meio
O início, o fim, o meio

Velórios são situações muito peculiares. Apesar de serem, primeiramente, um cumprimento de protocolo, são momentos de afeto: enquanto familiares, nos colocamos à disposição da sociedade para receber seus sentimentos; nesse momento, reencontramos pessoas que há muito não víamos. As pessoas se abraçam, se cumprimentam, se solidarizam, resgatam memórias, contam histórias, dão risada, caem lágrimas. Água, café, abraços, cheiro de flor. É um momento importante: um momento em que nos unimos num coletivo, e em comunhão homenageamos a pessoa que partiu.

Quando criança, li um livro chamado “Cazuza”, escrito em 1938 por Viriato Corrêa, que me marcou bastante. Peço licença para compartilhar com vocês um trecho do capítulo chamado Pinguinho:

No LUGAREJO em que nasci dava-se uma singularidade que eu não sei se ocorria em outra parte do mundo: o dia mais alegre era aquele em que morria alguma pessoa.


No meu tempo, quando morria alguém no povoado, para nós, os pequeninos, o dia inteiro era de traquinada, de algazarra e de alegria. Os taludos juntavam-se lá com os taludos; nós, pequeninos, brincávamos com os pequeninos.

Quando o enterro saía e a meninada de fora partia com os pais, as nossas almas ficavam mais tristes do que as casas em que o luto havia entrado. Para nós, que nada sabíamos da morte, nada mais tinha havido do que um maravilhoso dia de brinquedo, que terminava inesperadamente. Vivíamos sonhando com os dias de luto que traziam grandes dias de folguedos.

Talvez fôssemos mais de trinta, mais de quarenta. Mas nenhum, nenhum tão afoito e tão disposto a brincar como o Pinguinho. O Pinguinho devia ser o mais velho de todos nós, mas, tão franzino e tão frágil, que parecia o mais novo. Magro, pescoço comprido, ombros estreitos, ossinhos de fora.

Numa manhã, linda manhã em que as andorinhas brincavam no céu como garotinhos travessos, ele morreu.

O povoado encheu-se. Foi criança, criança, como eu nunca vi tanta na minha vida. Não podia haver dia melhor para se brincar. Mas (surpresa para toda a gente!) nenhum de nós brincou. Nenhum de nós saiu, sequer, para o terreiro. Ficamos todos em derredor do cadáver, sossegadinhos, tristes, silenciosos. Quando queríamos falar uns aos outros, era baixinho, aos cochichos, como se temêssemos perturbar a majestade da dor que nos afligia.

Tínhamos, pela primeira vez, compreendido a morte. Era a primeira vez que ela nos tocava de perto.

E, dali por diante, quando alguém morria no povoado, nunca mais enchemos de alaridos os terreiros e os quintais. Nunca mais fizemos de um dia de luto um dia de festa. Dali por diante, a morte ficou sendo para nós uma coisa séria, muito séria e muito triste.

À todos que já foram tocados de perto, o meu abraço.


Carla Cristina Kawanami, CRP 06/96109, é doutoranda em Serviço Social e Mestra em Educação: Psicologia da Educação pela PUC-SP. Psicóloga escolar do Instituto Federal São Paulo (IFSP) campus Registro.

Contato:

Email: carla.kawanami@gmail.com

Facebook: Carla Kawanami

Instagram: @carlakawanami

(Direitos Reservados. A Autora autoriza a transcrição total ou parcial deste texto com a devida citação dos créditos).

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