Entre os dois havia um desejo Entre os dois havia um desejo
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Entre os dois havia um desejo

Um dia no circo um menino vira para seu pai e diz: – quero ser palhaço quando crescer. O pai, muito apreensivo depois do espetáculo terminado, diz ao filho que a profissão de palhaço seria muito difícil, que talvez ele pudesse fazer outra coisa quando quiser trabalhar. Aqui o menino tinha cinco anos de idade.

Noutro momento, com 10 anos, o filho novamente, após ver o tio cortando cabelo de uma cliente, diz: - pai, gostaria de ser cabelereiro igual ao meu tio. O pai, mais uma vez, desprestigia a escolha do filho dizendo que seu tio trabalha muito, que algumas vezes é bem difícil para ganhar o dinheiro e manter sua família.

Já na adolescência, aquele menino que sonhou em ser um profissional palhaço ou cabelereiro passa agora a não saber mais o que poderia escolher para o seu futuro. Quando criança sonhava em ter uma profissão que pudesse unir o lúdico com a responsabilidade que representava para ele o mundo dos adultos. Após a reprovação do pai, não havia mais possibilidades já que todas aquelas haviam sido ‘desautorizadas’ pelo seu pai. As escolhas dele (palhaço e cabelereiro) faziam parte do seu modo de ler a realidade e de como isso poderia se encaixar na sua vida. O que houve foi um desencorajamento da palavra da criança.

Muitas vezes dedicamos tempo de nossa educação tentando enquadrar nossas crianças nos nossos desejos fracassados. Freud, num belíssimo texto chamado “Introdução ao narcisismo” (1914), disse que muitas das atitudes ternas dos pais para com seus filhos são uma espécie de revivescência e reprodução do seu próprio narcisismo há muito tempo abandonado. Ou seja, dedicamos boa parte de nossa educação tendo como interferência os nossos próprios desejos. Não dá para ser de outra forma (e é importante que seja assim, até certo ponto; sem o narcisismo seria impossível compartilhar socialmente nossos desejos e ideais), porém é importante dar abertura para que o desejo da criança apareça.

Na educação humana a confiança e a aposta na palavra é algo de extrema importância e central para que o processo ocorra de forma saudável. Arriscar nesse processo de educar seria aceitar que há uma perda e que ela é necessária. Educar também é aprender. A palavra latina ‘educare’ significa literalmente ‘conduzir para fora’ ou ‘direcionar para fora’. Logo, assumir a responsabilidade enquanto educador é sustentar a palavra da criança e apostar na sua condução. A palavra que representa o desejo infantil necessita ter um lugar de verdade em sua vida. Educar não é de fora para dentro, impondo nossas opiniões e nossos desejos. Por isso, do lado do educador a atividade educativa impõe uma perda. Perda das nossas ilusões e de nosso narcisismo.

Recordo um poema de Elizabeth Bishop, poetisa americana do século XX chamado “One Art” (A arte de perder, na internet é fácil de encontrá-lo). Em um dos trechos ela diz de forma emocionante que possamos aceitar “perder um pouquinho a cada dia”. Depois, que a gente possa “perder mais rápido, com mais critério”. Perder não é nenhum mistério na vida, mas é algo que se torna muito sério quando se é preciso renunciar ao nosso narcisismo para que surja algo de singular no outro. A leitura desse poema seria como que uma espécie de análise indispensável para os pais que se recusam a perder seus filhos para o mundo.

No cotidiano da clínica psicanalítica é muito comum atendermos casos como o do jovem relatado no início da coluna, pessoas que passam pela experiência e tem a sensação de que seu desejo sempre fica pendente. Procurar uma profissão que agrade nossos pais é uma realidade frequente e muitas vezes não nos damos conta dessas nossas escolhas. A consequência é de que o desejo nunca deixar de tentar buscar uma saída, e mais cedo ou mais tarde volta pedindo passagem. Acertar as contas com os nossos desejos muitas vezes é uma forma de ter que encarar os nossos ‘sonhos’ abandonados.

Referências:

Freud, S. (1914) Sobre o narcisismo: uma introdução. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

A arte de perder na voz de Antonio Abujamra (2011) - https://www.youtube.com/watch?v=03GVUJpVk2g

Daniel Vicente da Silva

Psicanalista e Psicólogo clínico, Membro Associado do Núcleo de Estudos em Psicanálise de Sorocaba e Região – NEPS-R.

E-mail: danielvicente_@hotmail.com

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