A enchente A enchente
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A enchente

 

O rio enche.

 

A enchente

De suas margens, a água transborda num furor endoidecido, levando tudo o que se encontra pela frente. No céu, a chuva é uma só; há muitos dias que cai sem parar. Tantos meses de seca, tanta lavoura perdida, e agora, de repente, aparece esse mundo de água que não acaba mais. Vingança da natureza? Mas que mal o ribeirinho lhe fez, se sempre soube se utilizar dos seus recursos com sabedoria e parcimônia?

 

As últimas notícias dão conta que Ribeira-acima as coisas estão bem piores. Xiririca está sob as águas, e todas as orações se voltam para a protetora Nossa Senhora da Guia, que em seu altar lança o olhar benevolente sobre a cidade como se para impedir que as águas flagelem ainda mais seus fiéis.

 

Na canoa, o ribeirinho vaga pelos espaços de seu pequeno domínio, posse herdada dos antepassados, tentando resgatar as criações poupadas pelas águas. No fundo da canoa, a mulher tem os olhos vermelhos, mas não verte uma lágrima; sabe que o esposo e os quatro filhos precisam dela firme e forte. Ele recolhe algumas galinhas, e vê os corpos boiando na correnteza de seus porcos e bois; tudo perdido. Da plantação, só avista as pontas que balançam sob o caminhar furioso das águas. Nada restou, além dele e a família e aquele pouco de criação.

 

Em seus quarenta e tantos anos morando naquelas terras jamais vira tanto água junta. Verdade que o Ribeira sempre foi um rio caprichoso, protagonista de enchentes espetaculares. O avô lhe contara que, pelos idos de 1807, a Vila de Xiririca fora completamente destruída pelas águas e teve que ser transferida para o local atual. Notava as lágrimas que escorriam dos olhos marejados do velho quando ele narrava essa história.

 

Logo se desvia desses pensamentos e continua a remar sob a chuva que insiste em cair. Talvez vá para o abrigo da cidade, onde outros já se encontram há dias, longe de suas terras, distantes de suas casas destruídas e de suas mobílias levadas pelas águas.

 

Enquanto rema, olha desgostoso para a mulher e os filhos, e nem sequer pensa em chorar. Seu choro, por certo, de nada adiantaria contra a fúria do rio.

 

(Publicado originalmente no “Jornal Regional”, nº 240, de 13/3/1998).

 

 

ROBERTO FORTES,

ROBERTO FORTES, escritor e poeta, é licenciado em Letras e autor do livro de contos “O Tucano de Ouro - Crônicas da Jureia” (2012), além de centenas de crônicas e artigos publicados na imprensa do Vale do Ribeira.  E-mail: robertofortes@uol.com.br

 

(Direitos Reservados. O Autor autoriza a transcrição total ou parcial deste texto com a devida citação dos créditos).

 

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