A Velha e o Porco A Velha e o Porco
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A Velha e o Porco


“A mulher tinha razão. Morrer para ser salgado e estendido num varal! Isto é demais! Inconscientemente, ela via na morte do porco o paradigma de todas as mortes”. – Noticiário oficial das Paróquias de Apiaí, Ribeira e Iporanga, “Santos Jornal”, nº 38, 1º-8-1959.

 
A Velha e o Porco
A VELHA E O PORCO
O padre Pedro acabara de chegar a Itaoca. A cada mês deixava a vila de Apiaí, sede da paróquia, para desempenhar suas funções sacerdotais naquele povoado do Alto Ribeira. Quando chegava à vila, encontrava muitas almas para serem batizadas, muitos casamentos já consumados, mas ainda não sacramentados pela Igreja, além de muitos registros de óbitos para serem consignados no livro competente, que mal e mal eram anotados pelo zeloso sacristão.

A viagem era feita em canoa. Avançando lentamente pelas águas da Ribeira, o percurso se fazia em cerca de meio dia, com dormida em alguma paragem quando a noite começava a se anunciar. Mal chegava o padre a Itaoca e o povo já o cercava. Desta feita encontrou uma mulher acamada.

– O senhor padre tem óleo santo pra gente beber? Os antigos dizem que é tiro e queda, e quero me curar logo...

Ao que o padre Pedro a censurava:

– Minha senhora, eu lhe trouxe a comunhão!

– Hum, isso é bom também, seu padre...

Padre Pedro se martirizava. O doente quer, antes de tudo, salvar o corpo. “Meu Deus”, pensava o sacerdote, “e onde fica a alma?”

Outro itaoquense achegou-se ao padre, trazendo uma garrafa à mão, o que despertou a curiosidade do vigário.

– E essa garrafa aí, o que tem dentro? É alguma receita homeopática?

– Não, seu padre, é água benzida mesmo...

– Que bom, e quem a benzeu? Trouxe da igreja?

– Não, seu padre, quem benzeu foi seu fulano, ele mora aqui pertinho. Isto é bom que dói...

Era difícil ao padre conciliar os sacramentos religiosos com as crendices do lugar.

Ao chegar à acanhada capelinha, dedicada a São Sebastião, padre Pedro encontrou a porta da frente fechada. Não se demorou ali nem um minuto, logo apareceu o sacristão.

– Seu vigário padre! – disse calmamente o sacristão – Antes de o senhor começar os despachos que esperam mecê na igreja, venha comigo na casa da viúva fulana. A velha só está esperando a hora de entregar a carcaça à terra e o espírito a Deus. A família, pelo sim pelo não, quer deixar garantida a extrema-unção que a velha tem direito antes de partir desta pra melhor...

A casa da viúva ficava na outra rua, das duas que formavam o lugarejo. A casa era de taipa, baixa, coberta por telhas de canal e caiada de branco. Os familiares receberam o padre na sala, e em seguida se dirigiram ao quartinho onde a velha estava entrevada há mais de um mês. Na cama, coberta por uma manta puída que um dia fora da cor marrom, padre Pedro pode observar o rosto magro e devastado da velha. Percebeu que a velha o recebeu com uma expressão de angústia nos olhos, como se algo a estivesse apavorando.

– Ui, ui, ui – gemia a velha. – Não quero morrer desse jeito, seu padre... Não deixe eles fazerem isso comigo, não... ui, ui, ui...

No aposento apertado, onde os presentes eram obrigados a se espremer uns aos outros, padre Pedro notou que haviam colocado um saco de sal no chão, a cerca de um metro da cama da velha. E o que mais o impressionou foi que, no pé da cama, tinham colocado a metade de um porco. Que cena bizarra! A família não tinha onde guardar o suíno, que estava reservado para a ceia natalina, dali a duas semanas. O porco fora limpo, salgado e colocado sobre o colchão.

Os olhos esbugalhados da velha, a face transtornada, estavam a evidenciar toda a sua angústia. Padre Pedro, sacerdote calejado por tantas coisas vistas e vividas neste mundo de Deus, ordenou que a família retirasse dali imediatamente a metade do porco e o saco de sal.

– Dêem paz ao espírito desta cristã... – disse o padre. – Vocês não estão vendo que, depois de morta, ela não quer ser salgada que nem um porco?...

NOTA

Esta ficção histórica faz parte do livro “Os mistérios do Vale - Crônicas Ribeirenses”, de minha autoria, a ser publicado em breve.


ROBERTO FORTES
ROBERTO FORTES, historiador e jornalista, é licenciado em Letras e sócio do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.  E-mail: robertofortes@uol.com.br


(Direitos Reservados. O Autor autoriza a transcrição total ou parcial deste texto com a devida citação dos créditos).


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