Júlio César da Silva, um ilustre poeta do Vale Júlio César da Silva, um ilustre poeta do Vale
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Júlio César da Silva, um ilustre poeta do Vale

O Brasil é um país sem memória. Essa frase já se tornou um jargão gasto pelo uso. Razões existem de sobra para justificá-la. Pouca importância se dá aos fatos e aos vultos do passado. Muitas pessoas de valor, que brilharam em seu tempo, hoje são completamente esquecidas. A indiferença e o descaso as relegaram a mesquinho esquecimento. Coisas de um país subdesenvolvido, que não dá a mínima a sua própria memória?



Júlio César da Silva, um ilustre poeta do Vale
Júlio César da Silva, um ilustre poeta do Vale

O leitor talvez jamais tenha ouvido falar em Júlio César da Silva. A sua ignorância não merece reprovação, afinal vivemos num país que pouco ou nenhum valor dá às gentes e aos fatos do passado, não é mesmo? Sendo assim, permita-me apresentar-lhe, caro leitor, um grande poeta.

 

Júlio César da Silva nasceu em Eldorado, a velha Xiririca dos faiscadores de ouro, no dia 23 de dezembro de 1872, na então Província de São Paulo. Irmão da poetisa parnasiana Francisca Júlia da Silva (Eldorado-SP, 31-8-1871 – São Paulo-SP, 1º-11-1920), foram seus pais o advogado provisionado Miguel Luso da Silva e a professora Cecília Isabel da Silva.

Escritor, poeta, teatrólogo e jornalista, Júlio César dedicou-se durante mais de trinta anos à
imprensa periódica de São Paulo, sendo um literato muito respeitado em seu tempo, comparado ao nível de um Vicente de Carvalho, de quem era amigo. Escreveu para importantes jornais e revistas do país.

Em 1892, aos 19 anos, publicou o seu primeiro livro de versos, “Stalactites”, editado por Hennies & Winiger, de São Paulo. A respeito do lançamento desse livro, encontramos as seguintes linhas na edição de 19-7-1892 do “Correio Paulistano”, então o principal jornal editado no Estado de São Paulo e um dos mais importantes do Brasil:

Stalactites É esse o título de um livro de versos que acaba de ser dado á estampa pelo sympathico e esperançoso poeta Julio Cesar da Silva. Agradecendo o exemplar que nos foi offerecido pelo auctor, promettemos escrever mais de espaço acerca do seu valor litterario e artistico.”

Júlio César da Silva formou-se em Direito pela Faculdade do Largo de São Francisco em 27 de novembro de 1893, conforme noticiou o mesmo jornal, em sua edição de 28-11-1893:

Bacharelandos Completaram hontem o seu curso jurídico os estimáveis e intelligentes moços, Julio Cesar Cardoso, nosso collega d´Estado, e Julio Cesar da Silva, assíduo collaborador da secção poética desta folha. Nossas cordiaes felicitações aos jovens e distinctos bacharelandos.”

Dois anos depois, apareceria o livro de versos “Sarcasmos” (1895), de cunho nitidamente simbolista, novamente editado por Hennies & Winiger.

O crítico literário Fernando Góes (1915-1979), em seu livro “Panorama da Poesia Brasileira: O Simbolismo” (Civilização Brasileira, 1958, Vol. IV) escreve que “depois de ter tentado a vida eclesiástica, Júlio César da Silva teve, na mocidade, uma vida rica de aventuras: foi artista circense, atleta, acrobata, andou por Buenos Aires e Montevidéu, foi elemento de destaque nas rodas literárias e na boemia que marcou a vida intelectual da Pauliceia nos últimos anos do século passado [séc. XIX].”

Apesar de formado em Direito, não encontramos, até o momento, evidências de que Júlio César da Silva tenha atuado na área jurídica. Talvez tenha preferido a estabilidade proporcionada por um emprego fixo na Prefeitura de São Paulo, no qual se aposentou. Com as despesas e o sustento da família garantidos, teve condições para se dedicar de corpo e alma a confecção de seus poemas, publicados nos principais jornais e revistas de seu tempo, e também para ser o redator de diversas revistas literárias.

Júlio César da Silva - "Arte de Amar"
Júlio César da Silva - "Arte de Amar" 

 

PRODUÇÕES LITERÁRIAS


Em 1899, Júlio César prefaciou o “Livro da Infância”, de sua irmã, a já então consagrada poetisa Francisca Júlia, que foi utilizado nas escolas estaduais.

Em 1903, há o anúncio de mais um livro, que não chegou a vir a lume. Nos exemplares da primeira edição de “Esphinges” (1903), de sua irmã Francisca Júlia, na folha anterior à página de rosto, foi colado um papel de seda, impresso em vermelho, com a seguinte informação a respeito da publicação de novo livro de Júlio César da Silva:

“Brevemente EXTATICON - Versos de Julio Cesar da Silva - editados pela mesma casa. Edição especial luxuosamente impressa - ornada de culs-de-lampes. Impressão nova. Bentley Junior & Comp. SÃO PAULO. Officinas typographicas, de encadernação e pautação. Rua Libero Badaró, 58 e 58-A.”

Por esse anúncio, é de supor-se que o livro já estava publicado, levando-se em conta o detalhe da impressão (“Edição especial luxuosamente impressa - ornada de culs-de-lampes. Impressão nova.”). Porém, desse provável livro não se tem notícia nos jornais daquele ano, e nem na relação de obras do autor publicada em livros posteriores.

Em 1912, em colaboração com a inseparável irmã, escreveu “Alma Infantil”, “versos para uso das escolas”, publicado pela Livraria Magalhães. Essa obra foi aprovada pela Diretoria de Instrução Pública de São Paulo e pela Diretoria de Instrução do Distrito Federal, tendo sido largamente usada nas escolas públicas de São Paulo.

Em 1915, Júlio César publicou “A Morte de Pierrot”, comédia triste em versos, numa edição da revista “A Vida Moderna”. Essa peça foi representada pela primeira vez no Teatro Carlos Gomes, do Rio de Janeiro, no dia 14 de junho de 1917, sendo interpretada pelos artistas Tina Vale e Alves da Cunha.

“Arte de Amar”, considerada a sua obra-prima, viria à estampa em 1921, escrita em apenas 28 dias, de março a abril desse ano, publicada por Monteiro Lobato & Cia. Nesse período, Júlio César achava-se em convalescença devido a uma enfermidade, que o afastou durante um mês das lides jornalísticas, fato que nunca ocorrera nos seus trinta anos de imprensa.

 

O livro mereceu elogiosos aplausos dos principais escritores e críticos da época. Teve três outras edições, em 1924 (ampliada) e 1928 (resumida) pela mesma editora de Monteiro Lobato, e, em 1961, pela Companhia Editora Nacional, que republicou na íntegra a edição de 1924.

Martins Fontes (1884-1937), renomado poeta santista, expressou-se com as seguintes palavras quando do lançamento desse livro: “O sábio sutil da ´Arte de Amar´ é um grande poeta, um artista maravilhoso.”

João Ribeiro (1860-1934), o mesmo que prefaciara o livro de estreia de Francisca Júlia (“Mármores”, em 1895), considerado um dos principais críticos de seu tempo, não teve dúvidas ao exaltar as qualidades poéticas de Júlio César: “São numerosas as belezas deste livro. Não faltam a cada passo versos impecáveis e pensamentos bem expressos.”
O poeta Brenno Ferraz, por sua vez, fez rasgados elogios: “Um grande livro, de um grande poeta. Raras vezes no Brasil se tem publicado livro de igual valor. ´Arte de Amar´ é um extraordinário poema de lágrimas, de pensamento e de amor. Em espírito nunca se viu livro igual.”

 

Na segunda edição de “Arte de Amar”, de 1924, na relação das obras do autor, consta que estava “no prelo” o livro de prosa “Gaveta de Sapateiro”, também a ser publicado pela Monteiro Lobato e Comp. Editores. Tal informação é repetida no livro “O Diabo Existe”, de 1925, também com a ressalva “no prelo”. E na terceira edição (reduzida) de “Arte de Amar”, de 1928, o livro consta como publicado pela referida editora, porém, não encontramos, até agora, qualquer exemplar desse livro, nem referência a seu respeito na imprensa da época, o que nos leva a acreditar que, por motivos que desconhecemos, não tenha sido publicado. Na quarta edição de “Arte de Amar”, de 1961, não consta esse livro na relação de obras do autor, o que é uma forte evidência de sua não publicação.


A obra poética de Júlio César da Silva, apesar de rica, talvez tenha sido “eclipsada” pela sombra de sua irmã Francisca Júlia, que mereceu maior atenção dos críticos da época. No entanto, mesmo esquecida, a obra de Júlio César possui qualidade suficiente para inscrevê-lo entre os principais poetas brasileiros.

O crítico Péricles Eugenio da Silva Ramos (1919-1992) considera a obra de Júlio César da Silva “bastante arrojada para a época”. Em sua poesia, aparecem frequentes alusões à obra de Goethe, do qual traduziu vários poemas e no qual se inspirou para algumas paráfrases, como o conhecido “A Taça do Rei de Tule”, uma recriação do poema “O Rei de Thule”, do poeta alemão.

Júlio César da Silva faleceu em São Paulo (SP) no dia 15 de julho 1936, aos 63 anos. Seu nome foi dado a rua no Brás, na capital paulistana, durante a gestão do prefeito Fábio Prado (1934-1938).

BIBLIOGRAFIA

1892 - “Stalactites” - Typographia de Hennies & Winiger
1894 - “Sarcarmos” - Typographia de Hennies & Winiger
1912 - “Alma Infantil” - Editora Livraria Magalhães
1915 - “A Morte de Pierrot” (comédia em versos) - Edição de “A Vida Moderna”
1921 - “Arte de Amar” (1ª ed.) - Monteiro Lobato & C.
1924 - “Arte de Amar” (2ª ed. ampliada) - Monteiro Lobato & C.
1925 - “O Diabo Existe” (contos) - Cia. Graphico-Editora Monteiro Lobato
1925 - “Machado de Assis” - Conceitos e Pensamentos - Cia. Editora Nacional
1928 - “Arte de Amar” (3ª ed. reduzida) - Cia Editora Nacional
1934 - “Machado de Assis - Conceitos e Pensamentos” (2ª Ed) - Cia. Ed. Nacional
1961 - “Arte de Amar” - (4ª ed.) - Cia. Editora Nacional


A TAÇA DO REI DE TULE

                               I

Trêmulo, as barbas úmidas de choro,
No fim da vida, o rei de Tule, um dia
Tirou a taça pela qual bebia
Do cofre onde guardava o seu tesouro.

Era essa a joia de maior valia;
E ante os nobres e gentes do seu foro
Ao mar lançou a linda taça de ouro...
E minutos após, o rei morria.

Se essa taça continha algum arcano,
Hoje somente é o mar quem lho devassa,
Porque ela faz no fundo do Oceano;

Beija-a, somente, arfando, a água que passa...
E hoje ninguém, lábio nenhum profano
O vinho prova por aquela taça...

                            II

Quando me chego a ti, por mais que faça
Por conter dentro de mim este alvoroço,
Sinto que sou, sem reino e embora moço,
O rei de Tule, e tu, a minha taça.

Dos teus lábios ninguém hoje devassa
O fundo senão eu; e enquanto posso,
No mel que eles contém, os meus adoço...
Mas por fim tudo cansa e tudo passa.

Não poder, como o rei, no fim da vida,
Ante os meus cortesãos, jograis e sábios,
Lançar ao mar também, taça querida,

Para que ninguém mais sinta os ressábios
Dessa bebida por mim só bebida
Pela taça vermelha dos teus lábios!


CANÇÃO DO REI DE TULE (DE GOETHE)

Compare com o poema original, de Goethe, que serviu de inspiração a Júlio César da Silva:

Houve um rei de Thule que era
mais fiel do que nenhum rei.
A amante, ao morrer, lhe dera
um copo de oiro de lei

Era o bem que mais prezava
e mais gostava de usar:
e quando mais o esvaziava
mais enchia de água o olhar.

Quando sentiu que morria,
o seu reino inventariou,
e tudo quanto possuía,
menos o copo, doou.

Depois, sentando-se à mesa,
fez os vassalos chamar
à sala de mais nobreza
do castelo, sobre o mar.

E ele ergue-se acabrunhado,
bebe o último gole então
e atira o copo sagrado
às ondas que em baixo estão.

Viu-o flutuar e afundar-se,
que o mar o encheu de seus ais.
Sentiu a vista enevoar-se:
E não bebeu nunca mais!

(Tradução de Guilherme de Almeida)

ROBERTO FORTES

ROBERTO FORTES, historiador e jornalista, é licenciado em Letras e sócio do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.  E-mail: robertofortes@uol.com.br

Blog: https://robertofortes.blogspot.com/

(Direitos Reservados. O Autor autoriza a transcrição total ou parcial deste texto com a devida citação dos créditos).

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