Um dia o pássaro voa

Um dia o pássaro voa


Após um período de fortes crises na escrita, retorno a esse espaço com mais coragem e disposição.

O encontro com as letras parece ser um momento de muitas sensações. As letras são como uma espécie de preenchimento do vazio. Numa tarde de sol podemos mudar a realidade e inserir chuva onde não havia. 

O poder das palavras transforma o mundo e nos fazem recortar cada pedaço da existência humana. A linguagem humana cria realidades e nos traz a possibilidade de suportar o desagradável.

Dia desses tive um sonho em que me encontrava numa paisagem rural, caminhando sozinho entre um sítio e outro. Recordo-me claramente da terra vermelha onde pisava (com certeza referência à minha infância, de muita terra roxa) com chinelas e das árvores que iriam facilitando o percurso pela sombra. 

Num dos momentos paro e tenho a sensação, dentro do sonho, de que estou a contemplar o horizonte distante. Lembro-me de olhar ao redor e não dar conta de assimilar, perceber tanta beleza que me toma os olhos. 

Fico admirado e embevecido pelo quadro estético que me aparece. As cores vivas, o céu azul forte, a vegetação de um verde penetrante. Havia um objetivo maior no sonho, mas me lembro de que fui fisgado pelo cenário e não conseguia sair dele. 

Fiquei paralisado, estático, sem movimento. Nesse momento houve um sentimento de angústia e eu acordei.

Como não consegui dormir logo em seguida, me atentei com mais profundida a vivencia do sonho e as sensações que ainda estavam presentes. Imagens, pequenas lembranças se misturavam entre as vivências da infância e a os momentos do sonho que acabara de ter. 

Aquilo tudo gerou um estado de euforia tamanha que me levantei e fui tentar escrever o sonho. Nada saia e nada que eu pudesse fazer me ajudava na escrita dele.

Ainda hoje, após alguns dias me bate uma sensação de entusiasmo, de exaltação como naquele momento. O coração acelera e eu de fato fico mais agitado. 

É como se tivesse sido arrebatado pelo sonho de uma maneira que marcou, traumatizou, fixou em mim um afeto tão verdadeiro que não deixa dúvidas (mesmo se tratando de um sonho) de que, de fato, aconteceu e é verdadeiro (verdade no sentido interno, psíquico). 

É a mesma sensação quando uma criança é acometida por um pesadelo e a mãe lhe diz “é apenas um sonho”. O efeito do pesadelo ainda continua a lhe perturbar, mesmo sendo “apenas um sonho”.

Não só com os sonhos, mas muitas experiências cotidianas nos tocam como uma flecha ao atingir seu alvo. Tragédias, desencontros nos marcam profundamente, mas não só. 

Momentos de alegrias e prazeres gravam em nós estados de contentamento que nos fazem querer repeti-los a todo instante. As crianças têm muito mais propriedade sobre esse assunto e nos ensinam em todo tempo: quando chega a hora de dizer “tchau” para uma coleguinha, fazem manha e brigam com os pais tentando prolongar a hora da brincadeira. 

Quando algo lhes causa desprazer, não insistem como nós adultos, parecendo saber (e de fato sabem) que algo não lhe apraz.

De volta à experiência do sonho, algo me possibilitou a desvencilhar daquele ensejo que me prendia à fantasia onírica. 

A minha salvação foi de fato uma frase que me ocorreu. A frase é a seguinte: “o muito no mundo é pouco diante do encantamento que ele nos produz”. Após anotar a frase, voltei para cama e consegui dormir tranquilamente.

Sem me apropriar do conteúdo, queria sublinhar afirmando que foi a letra, a frase, a linguagem (o mundo simbólico humano proporcionado pela nossa linguagem) que me fez, num passe de mágica, me libertar, fugir daquele sentimento que me prendia ao sonho. 

Ou seja, não foi mágica, mas sim que é pela palavra que nós, humanos, podemos alcançar o inalcançável. A palavra não dá conta de tudo, do todo, mas pode produzir em nós significações, sentidos que nos orientam diante do caos que é a existência.

Daniel Vicente da Silva

Psicanalista, Psicólogo clínico e Professor Universitário. Membro Associado do Núcleo de Estudos em Psicanálise de Sorocaba e Região – NEPS-R.

E-mail: danielvicente_@hotmail.com

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