A língua e seus sentidos

A língua e seus sentido


Nos últimos dias estive lendo também um livro sobre o exercício poético. A qualidade na escrita da poesia nos possibilita que nos transportemos de uma significação a outra num passe de mágica. Esse passe de mágica diz respeito às condições da palavra.

Dizem os linguistas que a palavra busca um referencial. Por exemplo, se digo a palavra ‘gato’ o referencial buscado tem a grande chance de ser o animal mamífero, do tipo carnívoro, da família ‘felidae’. Mas também pode indicar o sinônimo de ‘homem bonito’. Ou ‘fazer um gato’, algo como uma ligação elétrica clandestina e ilegal. ‘Gato’ também pode se referir ao ‘meu namorado’, meu amado’, ‘meu amante’; ou ainda ‘ele é um gato’ no sentido de ágil, rápido, astucioso.

Por tanto a linguagem e as palavras buscam, talvez por conta do desejo humano, acertar o alvo do referencial (daquele objeto ao nosso alcance imaginário) mas nem sempre acerta. 

Melhor dizendo, na maioria das vezes o alvo é transgredido pelo próprio poder das palavras. É a mesma coisa que estou tentado representar aqui neste momento. 

As palavras que uso para tentar expressar o meu pensamento chegará até você, leitor, da maneira que o referencial surgir para você, sem que eu tenha controle disso. 

Ou seja, tento escolher as melhores palavras para dar forma ao meu raciocínio, mas elas ‘passam a perna’ em nós todos e leva algo a mais, sem o meu controle (nem o do leitor).

Talvez você esteja pensando que eu queira dizer que as palavras têm vida própria. Ou talvez eu gostaria que você que está lendo a coluna agora pensasse isso que achei que indiquei nas entrelinhas, mas em nenhum momento lhe passou esse pensamento. 

Ou mais ainda, ao infinito, as observações e os pensamentos que irão surgir nos leitores a partir dessa minha escrita estão fora de nosso controle.

As discussões sobre a língua, a linguagem e as palavras vão por anos a fio com muita riqueza e descobertas interessantes. Os linguistas tentam atingir o ‘cume’ da pesquisa quando se trata da linguagem.

Uma das manobras muito estudadas diz respeito à poesia. Se partirmos do suposto de “que não haja realidade psíquica pré-linguística” (O fluxo e a cesura, p. 55, Souza Jr., 2023) ou seja, de que não existe, para o humano, nada do real que não esteja na linguagem, fica fácil admitir que a linguagem poética cria um mundo à revelia do mundo real. 

O que quero dizer é que (olha as palavras me passando a perna novamente) é possível que a poesia nos leve numa outra realidade que não seja a realidade material nem a realidade psíquica me apresentada no momento.

Sugiro um teste – leiam uma poesia e após deixem vir o que surgir. Garanto que não há nada de trivial para aqueles que forem ‘tocados’ pelas palavras do poeta. 

Ou também, abram a página do “You Tube” e escutem uma poesia falada. Por causa da dimensão sonora das palavras abre-se outras possibilidades de realidade. Além da escrita, o som das palavras também têm uma dimensão própria.

Por conta de as palavras carregarem em sua bagagem o inalcançável do infinito, nos leva as possibilidades também inimagináveis. Das guerras à política, das artes à tecnologia, as palavras são empregadas pelo humano para dar conta do que nos falta. Mas também “as palavras, contaminadas pela falta, estão longe de tudo dizer” ((O fluxo e a cesura, p. 123, Souza Jr., 2023). Dedicamos grande parte de nossas vidas escrevendo grandes tratados, intervindo em dizeres e oratórias, mas não controlamos onde isso tudo nos leva. Lidar com essa falta, essa impossibilidade em tudo não dizer é o fluxo que a poesia teria como liberdade alcançar.

Para terminar, um segredo de Carlos Drummond de Andrade:

Segredo

“A poesia é incomunicável.

Fique torto no seu canto.

Não ame

Ouço dizer que há tiroteio

Ao alcance do nosso corpo.

É a revolução? O amor?

Não diga nada.

Tudo é possível, só eu impossível.

O mar transborda de peixes.

Há homens que andam no mar

como se andassem na rua.

Não conte.



Suponha que um anjo de fogo

varresse a face da terra

e os homens sacrificados

pedissem perdão.

Não peça.” (Antologia poética, p. 317, Drummond de Andrade, 2010)



Daniel Vicente da Silva

Psicanalista, Psicólogo clínico e Professor Universitário. Membro Associado do Núcleo de Estudos em Psicanálise de Sorocaba e Região – NEPS-R.

E-mail: danielvicente_@hotmail.com

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