A família é um grupo, mas nem sempre o grupo é constituído por familiares.
Tenho escutado constantemente pacientes narrarem suas dificuldades e conflitos nos relacionamentos com seus familiares.
Parece que a coisa vinha bem escondidinha, mas que de uns tempos para cá, como relata uma pessoa recém atendida “toda a merda pulou para o ventilador” (ou talvez sempre estivesse lá, mas a diferença é que agora tivemos a coragem de olhar para cima).
Fato é que indivíduos que conviviam no almoço de domingo, semana após semana e não se importavam com as diferenças presentes estão dizendo não se suportarem mais, tamanha contrariedade nas relações.
Sendo na política ou na religião, na economia ou nos afetos, as pessoas estão cada vez menos sustentando a convivência com o diferente, gerando intolerância e reações agressivas.
Essa semana saiu uma matéria em um jornal de circulação nacional apontando para a falta de capacidade dos brasileiros em lidarem com as perdas.
Como se toda escolha não levasse em conta deixar algo de fora, nós brasileiros não estaríamos conseguindo aceitar tal fato, dificultando o momento de reconhecer que não conseguimos ganhar (não se pode ter tudo, já dizia minha avó).
Liga se a isso uma completa idealização em nosso mundo de fantasia. Provável que nosso ideal (aquilo que determina por onde Eu deveria ir para ter conquistas na vida) esteja tão alto que a perda seria uma consumação (dificílima de aceitar) de não estarmos vivendo “nas nuvens”.
Seja como for, o momento pelo qual estamos passando diz de muita polarização nacional. Há pensamentos contraditórios que não convivem mais juntos.
É consenso entre os especialistas em grupo, massas ou multidões (seja grupos físicos ou virtuais, constituídos por um líder, ou ideologias) de que entre outras características, há uma que facilitaria a sua existência e o manteria vivo (o grupo). Refiro-me a característica de que todo grupo tem que eleger uma espécie de ‘bode-expiatório’ para poder projetar suas hostilidades que não seriam bem vindas ao seu interior.
É como um grupo de torcedores de um time de futebol. Para que esse grupo tenha duração e existência de forma contínua, será imprescindível que entre as suas relações com outros grupos, possam escolher um rival (ou vários).
Ou seja, para que possamos funcionar como uma verdadeira irmandade (os irmãos identificados por uma causa maior que a própria vida individual de cada um, no caso o clube do coração) tem que haver outro grupo para que possamos odiar.
Não tem como o ódio circular entre os iguais. No fundo, odiar quem está fora é uma forma de manter o grupo coeso e onipotente (quando odeio o outro que é diferente de mim posso manter, na fantasia inconsciente, minha condição de ser melhor que ele).
De volta aos conflitos familiares.
Com a polarização e o esvaziamento de espaços para refletir sobre o contraditório (somado a facilidade da circulação de informações e a questão das “bolhas” produzidas pelos algoritmos na internet que também facilitam a separação entre “nós” e “eles”) fica mais difícil à convivência com aqueles que por outros laços (não mais somente sanguíneos, por afinidade, afetos) se fecham em grupos eleitos “de iguais”, tendo que atacar muitas vezes àqueles que em outros momentos era visto como “nossos irmãos”.
De acordo com a paleta de cores pintadas pelo discurso vigente em que eu me identifico, seleciono ou excluo de minha convivência (e não só, mas despejo toda raiva possível) todos aqueles indivíduos que um dia fizeram parte da mesma fraternidade.
Daniel Vicente da Silva
Psicanalista, Psicólogo clínico e Professor Universitário. Membro Associado do Núcleo de Estudos em Psicanálise de Sorocaba e Região – NEPS-R.
E-mail: danielvicente_@hotmail.com
A família é um grupo, mas nem sempre o grupo é constituído por familiares. |
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