A vida é movimento, mas nem sempre da forma que desejamos

Esses dias passei a assistir a um documentário sobre a vida do humorista Bussunda “Meu amigo Bussunda” (2021, disponível na Globoplay). A maior parte se passa com entrevistas entre familiares, amigos e conhecidos do personagem. Uma boa oportunidade para conhecer um pouco a vida de um ator que morreu precocemente e deixou uma trajetória muito particular e interessante.

Mas há outro ponto atraente nesse documentário que não diz respeito somente a vida do personagem. Trata-se de como as pessoas que o conheciam lhe descrevem. Os entrevistados dizem como ele era, o que gostava ou não, como se vestia e até sobre seus sentimentos. Assim como todo projeto metodológico de uma biografia, as entrevistas com pessoas que conheciam o homenageado são a chave principal para compor a obra sobre a sua personalidade.

Agora, um exercício de imaginação para adentrar no que estou querendo dizer sobre o que as pessoas que nos conhecem falam a nosso respeito: como seria se você ouvisse algumas pessoas que te conhece lhe descrevendo sobre a sua vida? Você já pensou em se apresentar pelas opiniões dos outros? Ou seja, quem falaria sobre você seriam as pessoas que convivem mais com você, sobre seu jeito de reação diante de problemas, seus gostos, seus dessabores e suas implicâncias.

Mas com que propósito? O de estranhamento. Será que nos reconheceríamos na apresentação de minha personalidade pelos que estão ao meu redor? Ou será que realmente essas pessoas conseguiriam nos descrever como de fato nos imaginamos ser? Fica a proposta da atividade imaginativa.

Elenco duas hipóteses minha sobre a conclusão que poderíamos chegar. Primeira, ao escutarmos os outros nos traduzindo e nos descrevendo teríamos a sensação de que realmente não nos conhecem. Essa resposta teria que ver com a dificuldade em colocarmos em junção a forma que nos constituímos psiquicamente e como nos ‘concebemos’ imaginariamente e de forma ilusória em conflito com a opinião dos demais. As pessoas que nos conhecem de fato não estariam dentro do espectro de ilusão que nos ajudaram a nos constituir.

Com essa primeira opinião quero dizer que ao assumirmos um ‘Eu’ em nós mesmos, quando digo a alguém o que gosto ou não gosto, esse julgamento normalmente é carregado de fantasias inconscientes sobre de fato ‘quem eu sou’. Muitas vezes essa convicção diz respeito a quem eu gostaria de ser e não efetivamente quem sou. Por isso é tão difícil escutarmos dos outros ponto de vista sobre as nossas ‘falhas’. A tendência é negar a qualquer custo, porque ao aceitarmos estaríamos colocando por terra toda a nossa construção irrisória sobre nós.

A segunda hipótese teria que ver com a também negação em nos reconhecermos na descrição dos amigos, com a conclusão de que ao nos estranharmos diante dessa possibilidade, ela nos traria um turbilhão de questionamentos e causaria um verdadeiro ‘terremoto’ nas fundações de quem acreditamos ser. Perguntas como ‘será que sou realmente como ela/ele disse sobre mim?’ ficariam como trilha para tentarmos seguir uma vida distante daquilo que desejamos ser. Por conta da fragilidade entre o que acreditamos ser e aquilo que realmente demonstramos ser passamos longe do que de fato somos e o como nos apresentamos durante nossa vida.

De fato, a vergonha que sentimos de nossos atos não impossibilita de viver em sociedade. Por isso criamos muitas defesas, durante toda a nossa história de vida, para tentarmos burlar as falhas que poderiam nos denunciar perante os demais. Mas há momentos em que as defesas não conseguem esconder tudo o que gostaríamos. Por isso aqueles que nos cercam muitas vezes podem saber ‘mais de nós mesmos’ do que acreditamos saber a nosso respeito.



Daniel Vicente da Silva

Psicanalista, Psicólogo clínico e Professor Universitário. Membro Associado do Núcleo de Estudos em Psicanálise de Sorocaba e Região – NEPS-R.

E-mail: danielvicente_@hotmail.com

A vida é movimento, mas nem sempre da forma que desejamos
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