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Caiçara

O sol de julho, manchado de um vermelho cor de sangue, sobe lentamente detrás do morro da Jureia e vai ocupando o seu lugar no céu pintado de um azul caprichoso. Ao longe, voam bandos de gaivotas. Perto, algumas canoas. Pescadores lançam e recolhem as suas redes.

Caiçara e sua canoa. Créditos: Paulo Zioli.
Caiçara e sua canoa. Créditos: Paulo Zioli.


Com remadas compassadas, mas sem pressa, Bastião conduz a canoa. Junto à popa, a rede e o jerivá. Ali por volta, o balaio. Pela altura do sol, calcula que já seja meio-dia. Faz um frio cortante. E ele nem ao mesmo se lembrara de pegar blusas para ele e Betara. Mas, comparado com ontem, até que o frio dá para aguentar.


Betara, garotinho mirrado de uns dez anos, encorujado no fundo da canoa, apenas observa as remadas firmes do pai. Monotonia. Remo vai, remo vem. Remadas atrás de remadas. Alguns peixes graúdos saltam sobre as águas. Betara consegue distinguir todo um cardume. Tenta contá-los, e chega à casa dos trinta. Mas logo se cansa, estica-se por ali mesmo e fecha os olhos, tentando completar o sono interrompido às quatro da manhã.


Na beira da praia, alguns pescadores recolhem as suas canoas, todas bastante castigadas. Bastião dá um brado:


– Abra os olhos, esse menino!... Pegue o remo, e reme um pouco...


Betara, num susto, pula de seu cantinho, esfrega os olhos sonolentos e, um pouco a contragosto, põe-se a remar. 


– Falta só mais um quilômetro... Logo a gente chega em casa... Você não tem que remar muito... Mas, anda, menino, força nesses braços... Fé em Deus, que o resto tudo se resolve...


*


Ao chegar à altura de seu porto, Bastião amarra a canoa num pedaço de pau previamente fincado na areia. Betara retira da embarcação duas tainhas gordas e um punhado de camarões avermelhados.


– Por hoje acho que chega – diz o pai.


Bastião, caiçara magro, de feições rudes tostadas de sol, tinha seguro na boca um cigarrinho de palha, cujo cheiro sempre incomodava o estômago de Betara.


– O pai não quer lancear mais uma vez?


Vendo a negativa do pai, Betara segura firme nas mãos o balaio com as duas tainhas e os camarões, e corre na direção de seu barraco, que fica em cima do jundu, atrás de frondoso abricoteiro copado.


*


Bastiana assou na chapa uma das tainhas e os camarões, servindo em seguida a mesa, na qual cinco crianças, magras e com fome, estão sentadas. Bastião, acocorado na soleira da porta, olha distraidamente os movimentos da mulher. Lá fora, os raios do sol emolduram de um vermelho pálido o topo do morro. Bastiana vai até a porta. Coçando levemente o queixo saliente, balbucia, meio desanimada:


– O Manequinho... sei não... está meio abatido... não come a comida, nem belisca...


– Frescura dele, mulher, só isso...


– Frescura nada, homem... Noite passada, eu acordei no meio da noite... Manequinho falava um palavreado esquisito... Não dizia coisa com coisa... Pensei até que ele estava acordado, conversando sozinho... Cheguei perto e vi que ele estava mesmo dormindo... Coloquei a mão na testa do menino e estava ardendo...


– Será que é febre? – Bastião levanta-se e vai até onde está sentado Manequinho, que olha sem interesse para a posta de tainha em seu prato. Põe a mão na testa do menino, depois no peito.


– É febre mesmo, Bastiana.


– E agora, o que a gente faz, homem?


– Manhã de manhã, eu levo ele até Iguape... Vou ver se o seu Athayde da farmácia me arranja um remédio...


A molecada, indiferente à conversa, devora afoitamente as postas da tainha. No dia anterior, Bastião nada pescara. Não teve almoço nem janta.


*


Durante toda a noite Bastião fica acordado, pensando na maneira de levar Manequinho até a cidade. Dinheiro ele não tinha, coisa rara por ali. Não tinha emprego fixo. Seu patrão era o mar; seu dinheiro, a pescaria do dia. Na farmácia, ofereceria uma tainha ao seu Athayde em troca de um vidro de remédio. Na última vez, com o Tonico, dera resultado, seu Athayde aceitara. Aceitaria também agora. Seu Athayde era boa gente, homem letrado, sSaberia entender a situação.


Em algum barraco da vila, alguém arranha a viola.


Bastião suspira. Vida dura. Sem dinheiro. Sem perspectivas. Mas, enquanto tiver forças para jogar uma rede, o mar jamais lhe negará o sustento, nem faltará peixe para trocar na cidade pelos produtos de que necessitar. Vida dura, com certeza. Mas que serve de exemplo para os filhos que vão crescendo e aprendendo que o mar, mesmo maltratando o cristão, também sabe recompensar o homem trabalhador.  


Lá fora, a viola continua.


(Do livro “O Tucano de Ouro - Crônicas da Jureia”, de Roberto Fortes)


ROBERTO FORTES

ROBERTO FORTES, escritor e poeta, é licenciado em Letras e autor do livro de contos “O Tucano de Ouro - Crônicas da Jureia” (2012), além de centenas de crônicas e artigos publicados na imprensa do Vale do Ribeira.  E-mail: robertofortes@uol.com.br


(Direitos Reservados. O Autor autoriza a transcrição total ou parcial deste texto com a devida citação dos créditos).

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