A pequenina Vila do Prelado, situada a
meia distância entre a Barra do Ribeira e o morro da Jureia, no município de
Iguape, é, sem sombra de duvida, um dos mais belos recantos daquele santuário. È
um dos raros aglomerados humanos ainda não contaminados inteiramente pela
“civilização”.
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Vila do Prelado, Jureia, Iguape. |
Na Vila do Prelado até pouco tempo não havia
energia elétrica, nem televisão, jornais ou quaisquer outros meios de
comunicação que conectassem os caiçaras dali em contato com o resto do mundo.
Não há linha de ônibus para a vila. Para
se ir até a Barra do Ribeira, que é o local habitado mais próximo, torna-se
necessário andar a pé pela extensão da praia da Jureia. No Prelado, também não
existe água encanada: os caiçaras se utilizam de poços, que oferece água um
tanto salobra, mais potável.
A Vila do Prelado sempre teve os seus
personagens encantadores. Em nossas andanças por aqueles lados, por inúmeras
ocasiões, tivemos a felicidade de entabular conversa com esses valentes homens
do mar, amigos de uma boa prosa, recheada de “causos” para lá de fascinantes.
Como, por exemplo, o velho seu Joaquim Cabeça Branca. Quando o
conhecemos em 1984, era o mais antigo habitante da vila, volteando a sua idade
ali em torno dos 73 anos, hoje, infelizmente, já falecido. No seu batistério,
foi registrado com o nome de Joaquim Ribeiro Alves, sendo também conhecido por “Joaquim
Migué”.
Filho do Prelado, caiçara robusto, a face
curtida de sol, farta cabeleira branca, disposição física a toda prova que fazia
inveja a muita gente nova. O seu amor pela vida era algo impressionante. Possuía
laços de parentesco com praticamente todos os moradores do lugar. Conhecia a
fundo a história da Vila do Prelado e sabia contar um “causo” como ninguém.
A voz mansa, a serenidade que aflorava, seu Joaquim contava historias, muitas
historias. Como quando foi cortar banana com um grupo de amigos no rio de Una
(também conhecido por Ridiúna),
ocasião em que um dos companheiros, por sinal bastante troncudo, com aqueles
pés enormes semelhando a raiz de abricoteiro, ao cortar um cacho de banana, eis
que, de repente, saiu dali uma enorme jararaca da grossura de uma garrafa de
pinga. Rapidamente o homenzarrão pisou o seu pé “delicado” na cabeça da serpente,
que se remexia toda e se enrolava pela perna, até que finalmente morreu.
Ou então aquela vez em que ele estava
passarinhando pela mata e, de repente, não mais do que de repente, no meio da
floresta virgem avistou um bando de gralhas. Ao tentar abatê-las, percebeu uma
enorme aranha vermelha na sua perna, que o picou sem a menor cerimônia. Seu Joaquim a matou, claro, mais passou
um dia inteiro com um terrível formigamento pelo corpo todo. Não tomou remédio,
nem precisava. “Não há nada que um bom gole de pinga não cure”, dizia ele.
Outro caiçara de destaque na vila era Seu Altino Rodrigues, também falecido, neto
dos primeiros povoadores daqueles matos, os irmãos Souza. Contador de “causos”
como ele só. A voz rápida, o falar ligeiro, o vernáculo que parecia remontar ao
português falado nos anos de 1500.
Seu Altino foi lanceador
dos mais gabaritados em seus tempos de moço. Um dos maiores tocadores de viola
daquelas bandas da Jureia. Com a sua viola mágica sempre animou os fandangos da
Vila do Prelado, que eram os melhores por aqueles lados, sendo o violeiro a
figura central das festanças. Na Folia dos Santos Reis, ele era o Rei, com
coroa e tudo, a pose majestática contrastando com a sua figura de homem do mar
calejado.
Figura pitoresca mesmo foi o famoso Antônio
Ricardo da Silva. Era ele quem, na ocasião da festa de Nossa Senhora da
Conceição, trazia a imagem da santa até a Vila do Prelado. Antônio Ricardo
conduzia a santa de casa em casa e, finalmente, parava num barzinho, “pois que
ninguém é de ferro”, dizia. Tomava umas e outras, jogando conversa fora, até
que ficava meio “alto”. Era então que chegava perto da santa e, com todo o
respeito que lhe dedicava, dizia: “Bem, Nossa Senhora, eu a trouxe até aqui;
agora a senhora me leve de volta…”
Referência especial também deve ser feita
ao caiçara Domingos Ribeiro Alves, irmão de seu
Joaquim Migué, ainda forte no alto de seus 80 e tantos anos. Domingos é mestre benzedor de sapinho, sapão e
outros bichos. Para “doença de ar”, diz ele, nada melhor que a plantinha aguaí, que nasce numa arvorezinha de
folhas estreitas e finas; só que a frutinha deve ser apanhada quando ela,
amadurecida, cair no chão.
Lagartixa dá sorte, segundo ele. É bicho
de bom agouro. Domingos sempre coloca em sua casa algumas lagartixas, mas elas
não param ali e vão embora. “Fazer o quê?”, diz ele, tristemente, mas continua
tentando: uma hora alguma lagartixa providencial se instalará bela e formosa em
sua casa. “Tudo é uma questão de tempo e paciência”, diz o velho e sábio
Domingos.
Vale a pena visitar a Vila do Prelado!

ROBERTO FORTES, historiador e jornalista, é licenciado em Letras e sócio do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. E-mail: robertofortes@uol.com.br
(Direitos Reservados. O Autor autoriza a transcrição total ou parcial deste texto com a devida citação dos créditos).
Blog: https://robertofortes.blogspot.com/
(Direitos Reservados. O Autor autoriza a transcrição total ou parcial deste texto com a devida citação dos créditos).
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