ROBERTO
FORTES
Figura controvertida, talvez a mais enigmática personagem
dos anos primevos da civilização brasileira, muito ainda se terá de pesquisar
para que se estabeleça algo de concreto sobre o Bacharel de Cananeia.
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O Bacharel de Cananéia (créditos: Representação imaginária do Bacharel de Cananeia, por Carlos Fabra) |
De acordo com Francisco Adolpho de Varnhagen, em sua
clássica “História Geral do Brasil” (publicada entre 1854-1857), foi no dia 24 de janeiro de 1502
que a armada de André Gonçalves, em que Américo Vespúcio era piloto, chegou a Cananeia:
“Do Porto de São Vicente
passou a esquadrilha ao da Cananeia, no qual deixou degredado um bacharel
português, que ainda aí vivia trinta anos depois. Propendemos a crer que seria
este bacharel sogro de Gonçalo da Costa, que aí veio a ser encontrado por
Cabot.”
O próprio nome desse bacharel já é bastante
controvertido. Diversos autores antigos o denominam diferentemente; no entanto,
trata-se de uma única pessoa. Na sua “Argentina”,
o cronista Ruy Diaz de Guzmán diz tratar-se do Bacharel Duarte Peres, que se
aliou a Rui García Mosquera no ataque a São Vicente, naquele que foi o primeiro
combate ocorrido entre cristãos por
estas partes das Índias Ocidentais.
O eminente Cândido Mendes de Almeida, em sua memória “Quem era o bacharel de Cananeia” (publicado
na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), procurou provar
que esse
personagem era o famoso
João Ramalho, inclusive que este teria precedido a Cristóvão Colombo na
descoberta da América.
Também Charlevoix,
em sua “História
do Paraguai”, escreve que Rui Mosquera veio das bandas do Sul com
vários castelhanos e se
estabelecera em Iguape
com um degredado português, bacharel, de nome Duarte
Peres.
Ernesto Guilherme Young (1850-1914), pesquisando os
arquivos dos cartórios e do Tombo de Iguape, publicou, em l896, pelo Instituto
Histórico e Geográfico de São Paulo, seu clássico “Esboço Histórico da Fundação da Cidade de Iguape” (1895), no qual conseguiu
identificar o bacharel como sendo Cosme Fernandes Pessoa, ou simplesmente
Mestre Cosme Fernandes. Young baseou-se no fato que, no século XVI, existiu em
Iguape um grande latifundiário chamado Cosme Fernandes, cujas terras,
posteriormente, passaram a seus herdeiros, entre eles o capitão Francisco
Álvares Marinho. Corrobora essa tese uma carta de confirmação de sesmaria,
passada na Vila de São Vicente em 25 de maio de 1542, por ordem do capitão-mor
Antônio de Oliveira: “
... faço saber ao que
esta minha carta de confirmação de sesmaria virem, como por Pedro Correia,
morador nesta vila de São Vicente me foi feita uma petição em que diz que por
Gonçalo Monteiro, que aqui
foi capitão, lhe foram dadas umas terras da outra banda desta
vila, que é o Porto das Naus, terra que era dada a um Mestre Cosme, Bacharel.”
(Sesmaria era uma sorte
de terras, geralmente de uma
légua de cumprimento por três de
largura, a qual
devia ser povoada
e cultivada pelo contemplado no
espaço de dois ou mais anos).
Sabemos que o Bacharel, após aquela famosa desavença,
recolheu-se a São Vicente, onde deve ter permanecido algum tempo, ocasião em
que foi contemplado com a sesmaria em questão. É certo que, já em 1536,
retornou a Cananeia, pois esse ano a Rainha de Portugal, Izabel, escreveu ao
Bacharel pedindo-lhe que prestasse todo o auxílio ao navegador Gregório de
Pesquera Rosa, que viria ao Brasil em busca de especiarias. Essa expedição, no
entanto, nunca chegou ao seu destino.
Capistrano de Abreu nos informa em seus “Capítulos de História Colonial” que os
primeiros colonos que vieram ao Brasil subordinavam-se a dois tipos extremos:
“uns sucumbiram
ao meio,
ao ponto de furar
lábios e orelhas, matar os prisioneiros segundo os ritos, e cevar-se em
sua carne; outros insurgiram-se contra ele e impuseram sua vontade, como o bacharel de Cananeia, que se
obrigou a fornecer quatrocentos escravos
a Diogo Garcia, companheiro de
Solis, um dos descobridores do Prata.”
Diz, ainda, mestre Capistrano que, no processo de desbravamento e povoamento de nosso país,
existiram três tipos de povoadores, ou seja: “o que não reagia e se submetia, o voluntarioso e indomável e o
medíocre ou conciliador, que vivem bem uns com uns e outros, europeus e
indígenas.” Segundo esse autor, os jesuítas empregaram seus esforços para que sobrevivesse o segundo tipo. Aquele “que se impunha, dominava, tornava-se
verdadeiro régulo, como aquele bacharel de Cananeia.” Tirar o medo aos
cristãos, senhorear gentio da terra pela guerra, amedrontá-lo com grandes
ameaças, esta foi a conduta do bacharel, coadjuvada pelos jesuítas e adotada
especialmente por Mem de Sá.
O Bacharel era figura bastante conhecida pelos antigos
navegadores. Mantinha com eles laços de amizade e até mesmo intercâmbio
comercial. Quando o navegador português Diogo Garcia de Moguer passou por São
Vicente em 1527, encontrou um bacharel que ali se achava desterrado. Emm sua “Memória de
la Navegación”, Garcia registrou que ali residiam, entre outros, o bacharel Cosme
Fernandes e seus genros Gonçalo da Costa e Francisco de Chaves, que receberam
os navegantes “de braços abertos”.
Foram realizadas, ainda de acordo com a “Memória”, transações comerciais de
vulto. Diogo Garcia adquiriu muitas provisões, além de encomendar a Gonçalo da
Costa a construção de um bergantim (pequena embarcação), e firmar com o
Bacharel e seus genros contrato pelo qual
estes lhe forneceriam quatrocentos índios dos que fossem aprisionados em
guerra.
Na “Memória” de
Garcia de Moguer encontramos a seguinte passagem:
“E de aqui
fuemos a tomar refresco em São Vicente questá en 24 grados, e ali vive um
Bachiller e unos yernos suyos mucho tiempo ha que ha bien 30 anos, e ali
estuvimos hasta 15 de Enero del ano seguiente de 27.”
O respeitado historiador santista Francisco Martins dos
Santos, em sua “História de Santos”,
comenta esse trecho da “Memória” de
Diogo Garcia, enfatizando que a expedição desse navegador teria aportado em Cananeia
e não em São Vicente:
“Há neste depoimento de Diogo
Garcia apenas um pouco de confusão. Os
30 anos de presença do ´bacharel´ estariam bem contados por aproximação, visto
que ele viera para o Brasil em fins de 1501, mas não em São Vicente (povoação)
e sim na costa de São Vicente, passado os primeiros anos de seu desterro em Cananeia
e Iguape, cidades de hoje que ele
fundaria ou iniciaria."
Outro documento, de 1540,
escrito por um cronista espanhol anónimo (cuja cópia está arquivada na
Biblioteca Nacional), certifica que o Bacharel residia mesmo em Cananeia:
“En la isla de Cananea en la tierra firme della ay pobló el Bachiller
dexó muchas naranjeras y limones y zidras y otros muchas arboles y hizo muchas casas, que se desplobaron despues
por los pobladores de San Vicente que
tuvieron guerra los unos co los otros, por que pretendiam que el
Bachiller les avia dar obediencia."
Francisco Martins dos Santos
também concordava com a tese segundo a qual o Bacharel de Cananeia se chamava
Cosme Fernandes, ao qual nome era precedido o título de Bacharel Mestre. Em sua “História de Santos”, Martins afirma ter
sido ele o primeiro a identificar o Bacharel como sendo Mestre Cosme Fernandes,
isso no ano de 1937. Talvez desconhecesse que, já em 1895, Young, em seu “Esboço Histórico”, tinha chegado a essa
mesma conclusão.
Pedro Calmón e outros historiadores descobriram, segundo
Martins dos Santos, que o nome completo do Bacharel era Cosme Fernandes Pessoa.
Isso muitas décadas depois de Young. São os "esquecimentos" da
História...
Ora, Young, em fins do século passado, consultando
registros de terras nos cartórios de Iguape, conseguiu determinar que, no século
XVI, existiu um bacharel que possuiu grandes extensões de terras em Iguape.
Essas terras, mais tarde, passaram para seus herdeiros ou para terceiros, que
ficaram encarregados de mandar rezar uma missa anual pela sua alma. Segundo
Young, o nome desse que foi o maior latifundiário de toda a história de Iguape
era... Cosme Fernandes!
Martins dos Santos ainda defende a tese de que o Bacharel
teria sido um padre ou mesmo um judeu, não concordando que ele tenha sido um
advogado não doutorado (ou seja, bacharel em Direito), pois, nos anos de 1500,
o título de bacharel era usado para designar homem de grande erudição e
técnica, como médico, físico e padre. Esse autor também acredita ter sido o
Bacharel o verdadeiro fundador de Iguape, Cananeia, São Vicente e Santos.
Contam que, diariamente, Cosme Fernandes subia até o topo
do Morro do Icapara – pequena elevação, antigamente conhecida por “Morrete” ou “Outeiro do Bacharel” – e ali se
punha a cismar, olhando para o vasto oceano, talvez se recordando com saudade
de sua pátria, para a qual jamais poderia retornar. Ao morrer, reza a lenda,
seu corpo foi enterrado numa cova talhada na rocha viva, no Morro do Icapara,
sendo recoberto com muito ouro em pó e valiosas jóias.
ROBERTO FORTES, historiador e jornalista,
é sócio do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.
Blog: https://robertofortes.blogspot.com/
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