Alegrias e tristezas de um professor em Xiririca e Iporanga no início do século XX Alegrias e tristezas de um professor em Xiririca e Iporanga no início do século XX
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Alegrias e tristezas de um professor em Xiririca e Iporanga no início do século XX

Imagine o leitor como deveria ser a vida de um professor primário no início do século XX numa escola rural do Vale do Ribeira. Imaginou? Parece algo inimaginável, não é mesmo? Pois essa experiência pode ser lida no livro “Alegrias, agruras e tristezas de um professor”, de Raimundo Pastor, que lecionou na escola rural de Ribeirão Grande, bairro da antiga Xiririca (hoje Eldorado) e em Iporanga, entre 1919 e 1925. Suas memórias, que foram publicadas em 1970 pelo Centro do Professorado Paulista, levam o leitor a uma fascinante volta ao passado.

Xiririca, em 1908.
Xiririca, em 1908.



Tomei conhecimento desse livro – e da história do professor Raimundo Pastor – numa crônica que o meu saudoso amigo J. Mendes (1918-1997) publicou em sua coluna na antiga “A Tribuna do Ribeira”, em meados da década de 1980. Desde então, vasculhei incontáveis sebos à procura dessa relíquia, até que, há alguns anos, consegui localizá-la.

Capa do livro “Alegrias, agruras e tristezas de um professor”
Capa do livro “Alegrias, agruras e tristezas de um professor”



O professor Raimundo Pastor, filho de uma família de imigrantes espanhóis, era natural da região de Botucatu (SP). Dedicando toda a sua vida ao magistério, Pastor se aposentou como delegado de ensino.

Nomeado no dia 11 de junho de 1919 para a escola masculina rural de Ribeirão Grande, em Xiririca, Raimundo Pastor pegou, em Santos, o trem com destino a Juquiá, na estação que ficava na avenida Ana Costa. Chegou à pequena vila de Juquiá às três horas da tarde, cansado, coberto de poeira. Na estrada, que não era empedrada, o trem levantava uma “tempestade de pó”, que penetrava pelas janelas.

Juquiá era a estação final da Estrada de Ferro Santos-Juquiá, da Southern São Paulo Railway. Contava com cerca de meia dúzia de casinhas de madeira levantadas à margem do rio Juquiá. Tanto a estação como o hotel eram próximos ao rio. Pastor nota que a lavagem da cozinha era jogada diretamente no rio. Na época de enchente, tudo ia ao fundo, demorando cerca de uma semana para as águas abaixarem.

A cerca de uns quinhentos metros da estação ferroviária, ficava a Vila de Santo Antônio do Juquiá, à margem direita do rio. “As casas”, escreve Pastor, “na maioria de aspecto indigente, esparramam-se, quase em desordem”. À chegada do vapor, o povo da vila corria às margens do rio. “É um espetáculo deprimente. A miséria estampa-se na face e no corpo daquela gente. Faces encovadas pela magreza ou inchadas pela opilação. Roupa em frangalhos. Barrigas intumescidas. As crianças, então, apresentam toda a miséria do lar. Descalças, com apenas uma camisinha curta, mostrando todo o resto do corpo nu. Como os pais, apresentam os mesmos sinais de opilação e de desnutrição. Perninhas descarnadas e ventre volumoso. Olhar vítreo, parado, sem expressão de vida.”

Todos eram atraídos pela possibilidade de ganhar algum vintém. Alguns ofereciam ao comandante do vapor aves, palmitos ou verduras para a cozinha da embarcação. “A gente deixa aquele pessoal com o coração oprimido. Não se pode imaginar que haja no Estado de São Paulo gente tão maltratada da miséria, da doença e da incúria. São farrapos humanos, espectros de gente, criaturas voltadas ao sofrimento.”

Pastor ficou hospedado no único hotel da vila. Diga de passagem, sua impressão não foi das melhores: “O hotel de Juquiá era o que havia de pior. Casa de tábuas, assentada rente ao rio. Calor bárbaro, ainda com as janelas abertas. Pernilongos aos turbilhões, transformando a estada do passageiro em tortura indescritível. E, como se isso não bastasse, havia sempre pândegos que gostavam de beber e cantar no botequim do andar térreo, até altas horas da noite, pois não havia horário de abertura ou fechamento”.

No dia seguinte, na hora do desjejum, os hóspedes sentavam-se todos juntos numa mesa longa, “repleta de xícaras e com um bule de café e uma cesta de fatias de pão, que vão passando uns aos outros, da melhor maneira possível. Há quem, para tirar uma fatia, apalpa todas as outras, à procura da mais tenra, pois as há de todas as idades. Tomando o café, paga-se a pernoite. A cobrança é efetuada no botequim. Ninguém sai à rua com as malas, sem deixar primeiro o dinheiro”.

Então, era hora de partir para a Barra do Juquiá, de onde Pastor continuaria a sua via dolorosa até Xiririca.

SEGUINDO PARA XIRIRICA

Deixando a Vila de Juquiá, o professor Raimundo Pastor pegou uma lancha com destino a Iguape; contudo, ele iria somente até a Barra do Juquiá (essa barra é a confluência do rio Juquiá com o rio Ribeira de Iguape), onde seria o primeiro pernoite da lancha. Pastor embarcou apenas com a roupa do corpo e seu guarda-chuva, já que a bagagem ficara para seguir alguns dias depois, quando haveria vapor direto para Xiririca.

Uma dúvida inquietava o jovem professor: como conseguiria chegar ao seu destino, Xiririca? Quando estava no hotelzinho da Barra do Juquiá, olhou pela janela e percebeu que um canoeiro, negro, estava esgotando sua canoa. Desceu e perguntou de onde ele era, ao que o canoeiro, que se chamava Zé Mateus, respondeu que era “da Xiririca”. Pastor, então, perguntou se ele conhecia o bairro de Ribeirão Grande, em cuja escolinha ele assumiria como professor primário.

O canoeiro respondeu que não conhecia esse lugar. Pastor ficou um pouco decepcionado. Mesmo assim, perguntou ao canoeiro quanto ele cobraria para levá-lo até Xiririca. “Serve por doze mil réis?”, foi a resposta de Zé Mateus. Havendo concordância, Pastor perguntou se chegariam ainda naquele dia. O canoeiro fez um gesto de espanto e respondeu: “Qu´esperança! Nem aminhã. Se o Senhor Bom Jesus de Iguape não mandar o contrário, havemos de chegar depois de aminhã, do meio dia pra tarde”.

 Não tendo outra opção, Pastor decidiu embarcar e seguiram viagem rio acima. A correnteza era forte, não havia remo que impulsionasse a canoa. Para esses trechos do rio, o canoeiro se valia de uma vara comprida (chamada de “varejão”). Escreve Pastor: “O canoeiro fica de pé na popa, apoia uma extremidade da vara no fundo do rio e descarga todo o peso do corpo na outra extremidade, impulsionando a embarcação água acima, até esgotar o comprimento do varejão, indo passo a passo até a proa. Em seguida, corre para a popa, antes que a embarcação volte muito atrás, e renova a operação até vencer a corredeira. É um trabalho violento, de grande esforço, e em que todos os músculos do corpo se entesam e se enrijam, saltando, como se quisessem romper a pele, que fica tesa como couro de pandeiro. O busto toma atitudes bizarras e curiosas, como se estivesse enfrentando em luta livre adversário temeroso”.

            Pastor ficou impressionando com o esforço despendido pelo canoeiro. “É um dos trabalhos mais estafantes que já vi”, escreve. “O esforço desumano dos barqueiros do Volga não seria tão violento quanto o dos canoeiros do Ribeira, no trecho entre Barra do Batatal e Iporanga, cheio de corredeiras. No entanto, ninguém decanta as proezas desses pobres diabos, arriscando a vida a cada momento e se alimentando dum virado de feijão com farinha, acompanhado de bananas nanicas ou dum naco de jabá cortado com o facão pendente da cinta. Aí não há, em verdade, poesia. Há, isso sim, padecimento”.

Num certo trecho do rio a canoa acostou e Pastor entendeu que passariam a noite ali. Galgando o íngreme barranco, foram dar com uma casa construída sobre paliçada. Embaixo dormiam porcos, que grunhiram com a chegada dos viajantes. Era o pouso de nhô Nascimento. Ao entrarem na casa, o dono gritou para alguém de dentro trazer o “belga”. Tratava-se de um candeeiro belga, com seu fogo luminoso, que clareou tudo, inclusive a figura simpática de nhô Nascimento, “caboclo de barba espessa, negra, ainda moço e de feições regulares e alegres”. Nascimento perguntou se Pastor era o novo delegado de polícia “da Xiririca”, ao que o moço respondeu que era o professor nomeado para a escola de Ribeirão Grande. “Conhece esse bairro?”, perguntou pastor. “Não conheço, ´nhor´ não”, respondeu Nascimento. Um frio percorreu a espinha do professor. Parecia que o bairro para o qual fora nomeado simplesmente não existia!

Homem de natureza hospitaleira, nhô Nascimento ofereceu aos viajantes um bom jantar, o que reanimou o professor que, sem ter almoçado, estava, como diz o povo, “varado de fome”. Foram se deitar por volta das onze horas da noite. Zé Mateus estendeu na varanda a esteira que forrava a canoa, dobrou o paletó em dois e fez dele um travesseiro. Pastor ficou num canto da sala, onde colocaram alguns cobertores no chão. Logo a casa ficou em profundo silêncio, só interrompido “a espaços pelo ronco de Zé Mateus e pelo grunhido dos porcos, no porão”.


Washington Luiz chegando a Xiririca (“A Vida Moderna”, nº 415, de 29-9-1921).
Washington Luiz chegando a Xiririca (“A Vida Moderna”, nº 415, de 29-9-1921).

A VISITA DE WASHINGTON LUIZ

            Depois de uma penosa viagem de canoa, o professor Raimundo Pastor finalmente chegou a Xiririca. Ficou hospedado na pensão da Maria Turca. Naquela época (1919), o chefe político da cidade era o coronel Avelino. Tempos atrás, o mandatário local fora o coronel Joaquim Brasileiro Ferreira. Havia muita disputa pelo poder. Pastor, a princípio, não teve boa impressão do lugar: “Cidade decadente. Casas velhas, muitas sujas por fora. Não tinham calçadas e as que tinham era uma calçada particular, de lajes de arenito, rústicas. Iluminação de lampiões de querosene. Grama crescida à vontade nas ruas e no Largo da Matriz. E se não crescia mais, é porque era tosada pelas vacas e burros soltos nas ruas”.

            Pastor escreve que era “perigoso” andar à noite pelas ruas da cidade. O professor explica: “Não por malfeitores, mas pelos tropeços, rodelas fresquinhas de estrume de vaca, número descomunal de sapos que perambulavam, estacionando em comícios em baixo dos raros lampiões, à cata de insetos e nuvem compacta de pernilongos que se estendia sobre a minúscula cidade, adensando-se mais ao redor dos lampiões e formando uma espécie de gaze viva suspensa no ar”.

            O calor era sufocante. Os habitantes ficavam à noite na frente de suas casas para “pegarem um ar”. Pastor percebeu um aspecto de pobreza na cidade. Mas gostou da gente do lugar: “O povo, como posteriormente observei, é de índole boa, pacífico por temperamento”.

            Pastor travou amizade com o secretário da Prefeitura, Jango Manuel. Devia ter entre 45 a 50 anos, era alto, bem apessoado e de aspecto respeitável. Era um homem culto, que colaborava com a “Tribuna de Iguape”, então o semanário de maior prestígio no Vale do Ribeira. O secretário possuía a melhor biblioteca da cidade. Ali Pastor encontrou os melhores autores nacionais, entre os quais Machado de Assis ocupava lugar de honra. Entre os autores estrangeiros, seus preferidos eram Victor Hugo, Balzac e Zola.

            Em setembro de 1921, o então presidente do Estado de São Paulo (cargo hoje equivalente a governador), Washington Luiz Pereira de Souza, visitou Xiririca. Foi um alvoroço na cidade. Os alunos das Escolas Reunidas, e a população em geral, foram até o cais para recepcionar o vapor Vicente de Carvalho. As crianças gritavam a plenos pulmões: “Viva o presidente do Estado! Viva o maior reformador do ensino paulista! Viva o iniciador das estradas de rodagem! Viva o maior homem do Estado! Viva o maior homem do Brasil! Viva o maior homem da América!”. Hino Nacional. Foguetório. Discursos. Houve sessão solene na Câmara Municipal.

            Subindo o Ribeira a bordo do vapor, a excursão presidencial vislumbrou um pavilhão escolar colocado num casebre, no sítio do Lorena, a uns duzentos metros do rio. O presidente mandou parar o vapor e foram todos até lá. Era uma escolinha primária dirigida pela professora era Benedita de Azevedo. O presidente parou à porta e contemplou a professora de costas, escrevendo na lousa. Até que um aluno chamou: “Fessora, tem gente na porta”. A professora ficou espantada ao reconhecer o presidente do Estado. Washington Luiz percebeu o embaraço da professora e foi muito cordial e simpático com todos.

            O presidente vistoriou a escola, os cadernos, fez perguntas às crianças. Após vinte minutos de perguntas, o presidente deu-se por satisfeito e disse: “Sim, senhor, eis uma escola que me satisfaz!”. E virando-se para a professora: “A senhora está de parabéns. Gostei de sua escola. Minhas felicitações seu esforço. E oxalá seu exemplo seja seguido por todas as professoras do Estado. E para premiar caso deseje sair daqui, pode dizer para onde deseja ir”.

            A professora pediu uma escola no município de Bernardino de Campos, terra de seus familiares. Ao que o presidente respondeu na hora: “Atendida!”. E virando-se para o seu ajudante de ordens: “Telegrafe ao D Alarico, dando cumprimento a esse pedido”.

            E, para atender ao pedido da professora Benedita, Washington Luiz criou uma escola em Bernardino de Campos.


Iporanga, início do século XX
Iporanga, início do século XX

SEGUINDO PARA IPORANGA

Em fevereiro de 1924, o professor Raimundo Pastor foi nomeado diretor das Escolas Reunidas de Iporanga. A princípio, o professor ficou intrigado, pois bem sabia que essas nomeações eram feitas mediante apadrinhamento político, e ele só conhecia de vista o chefe político da cidade, coronel Neves, que era o presidente do Partido Republicano Paulista local. O que Pastor ficou sabendo depois é que o mandachuva de Iporanga tinha mexido os pauzinhos junto ao Governo do Estado para conseguir a sua nomeação, evitando-se assim que fosse nomeado o professor Durval de Castro, que, apesar de ser o mais indicado, por estar há mais tempo na cidade, foi preterido no cargo pelo seguinte motivo: vivia namorando a filha do chefe da oposição e, uma vez casado, com certeza seria mais um forte opositor.

Mas, satisfeito com a nomeação, Pastor partiu para Iporanga. Naquela época, o acesso de Xiririca a Iporanga era feito através de três viagens mensais de canoas, subvencionadas pelo Estado. A canoa que o professor pegou saiu de Xiririca às cinco horas da manhã e navegou pelo rio durante dois longos dias, num percurso muito difícil devido às corredeiras. Com ele foi também um caixeiro-viajante português, ainda jovem, que viera à zona do Ribeira para vender os seus produtos. O primeiro pouso da viagem foi num bairro chamado Cafezal, bem ao anoitecer. Ali morava Nhô Sebastião, que acolheu os viajantes com sua costumeira cortesia. O velho ofereceu um bom jantar: feijão, arroz da terra, carne de porco conservada fria, couve picada e farinha torrada, além de uma pinguinha de sua fabricação caseira.

Após a refeição, Nhô Sebastião perguntou, orgulhoso, ao português, que tinha acabado de provar um gole da bebida: “Não gostou da pinguinha, moço? Pois é a melhor da redondeza”. Ao que o português respondeu: “Pinga boa é a que eu vendo. O senhor deve comprar de mim e não servir cachaça vagabunda como essa”. O anfitrião não gostou nem um pouco da desfeita do moço e disse: “Olhe, seu moço, essa pinguinha que aí está é feita de cana, sou eu quem a faz e sei o que faço. A do senhor, não sei do que será feita. É possível que seja feita de cana do brejo...”

O português percebeu que tinha dado uma bela mancada. Depois foram jogar uma partida de cartas. Formaram-se duas mesas. Nhô Sebastião ficou na mesa junto com o português. Não demorou muito e o hospedeiro reclamou: “Dessa maneira, moço, qualquer um ganha. O senhor está roubando à vista de todos. Não pense que a gente não enxerga nada porque é da roça...”. Ao que o rapaz retrucou: “Engano, senhor Sebastião. Não estou roubando. É que o senhor está mesmo de azar, de urucubaca. Está perdendo mesmo...”. Foi a gota d´água para o velho responder: “Roube, se quiser, moço, mas não blasfeme numa casa em que vive a paz do Senhor... Ouviu bem? Além de roubar, ainda profere palavras indignas do Senhor... Nesta casa vive-se com a lei de Deus”.

Novamente, o português ficou sem jeito e achou melhor ficar num canto, cabisbaixo. O professor Pastor também achou adequado ficar à parte, esperando a hora de dormir. A noite passou rapidamente e, quando foi às cinco horas da manhã, os canoeiros botaram o nariz para dentro da casa e gritaram: “Tá na hora, pessoal! Vamos embora...”. Nhô Sebastião fez questão que todos tomassem uma xícara de café, inclusive o jovem português.

Na hora de acertar as contas, o lusitano perguntou quanto devia, ao que o velho respondeu que não devia nada. O português insistiu, mas Nhô Sebastião não aceitou. Até que o lusitano teve a ideia de oferecer umas lembrancinhas às filhas do hospedeiro, e perguntou: “O senhor tem raparigas?”. O velho não se conteve e bradou: ‘Então o senhor tem a coragem de tratar de raparigas as minhas filhas, e isso na minha própria casa? O senhor está julgando o quê, diga, seu atrevido! O senhor está numa casa honesta, que se rege pelas leis do Senhor...”

Mesmo quando foi explicado que, em Portugal, a expressão “rapariga” referia-se apenas a moça solteira, e não à mulher à toa, nem assim o velho aceitou a explicação: “Ponha-se daqui para fora e já. Minhas filhas não são o que o senhor pensa para receberem presentes de homem. Minhas filhas só recebem presentes meus. Minhas filhas não são dessas que o senhor pensa, ouviu?”

Embaraçados pelo mal entendido, canoeiros e viajantes acharam melhor embarcar na canoa e seguir viagem rumo ao destino: a Vila de Iporanga. 

VISITANDO AS CAVERNAS

Iporanga em 1924 era, no dizer do professor Raimundo Pastor, “uma cidadezinha plantada na encosta do rio Ribeira de Iguape... construída no mesmo estilo de Xiririca... acidentada... As calçadas formavam degraus, observando diferença de nível, de distância em distância... Havia calçada com mais de metro e meio acima do nível da rua... Isso dificultava seu uso”.

Era uma vila simples, com duas centenas de casas igualmente simples. Pastor ficou hospedado na pensão do senhor Carlos Nunes, que devia beirar os setenta anos. O velho entendia de medicina homeopática, vestia-se decentemente e nunca saía de casa sem a sua inseparável bengala. Na mesma pensão morava o delegado.

Um fato curioso aconteceu logo no dia seguinte à chegada de Pastor. Pela manhã, o professor foi procurado pelo oficial de justiça, que explicou que ele fora designado pelo delegado para fazer exame cadavérico no corpo de um canoeiro que morrera afogado há vários dias. Pastor perguntou por que ele deveria fazer o exame, ao que o oficial de justiça respondeu que era para constatar que o canoeiro estava morto; na cidade não havia médico e o professor, sendo uma pessoa formada, saberia se desempenhar muito bem da tarefa.

Pastor perguntou por que deveria fazer o exame se o canoeiro estava de fato morto há vários dias. Para que iria verificar algo que todos já sabiam? “A lei manda!”, respondeu o oficial de justiça. Sem outra alternativa, Pastor foi até a canoa na qual jazia o corpo do defunto, examinou seu estado já em decomposição, o suficiente para lhe revoltar o estômago. Cumprida a sua obrigação, o professor perguntou, novamente, ao oficial por que ele tinha sido o indicado para tal tarefa. “Ninguém quis aceitar.. – disse o oficial. Além do mais, trata-se de assunto importante, muito sério mesmo, para ser resolvido por pessoa não formada... Quem não tem cão caça com gato...”

Continuando as suas memórias, o professor Raimundo Pastor descreve a figura de Nhô Bernardo, cafuso, “que nas suas andanças pela mata virgem descobriu, segundo constava, as grutas calcárias de Iporanga”. O velho esperava ser nomeado como zelador do local, pois, além de descobridor, era o que mais conhecia as grutas por dentro. Mas Nhô Bernardo não foi indicado. O fiscal nomeado nem se deu ao trabalho de visitar o lugar. Limitava-se a assinar o recibo no fim do mês e a receber o pequeno salário que lhe pagavam. Nhô Bernardo comentou com Pastor: “É para o senhor ver! Um queima os dedos para tirar o assado do fogo e outro é que vai comer, sem ter feito força. Mas não faz mal. Deus Nosso Senhor é grande e sabe o que faz.”

Em fevereiro de 1925, o professor Pastor, acompanhado do também professor João de Souza Ferraz, guiados por Nhô Bernardo, foram conhecer as famosas grutas calcárias de Iporanga. Souza Ferraz, mais tarde, se destacaria como escritor, escrevendo, entre outros, os livros “Caraguatás” (contos) e “Aguapés flutuam na Ribeira” (romance), com temas baseados no povo e na região do Vale do Ribeira. Exploraram as grutas do Monjolinho e do Arataca e ficaram fascinados com a beleza natural dessas formações geológicas.

Finalmente, pelos dias de maio de 1925, o professor Raimundo Pastor deixava definitivamente Iporanga e o Vale do Ribeira. Fora nomeado para diretor adjunto do Grupo Escolar de Ilhabela, que então ainda se chamava Vila Bela. Suas memórias, porém, ficarão para sempre como um fiel registro do povo, do modo de vida e das peculiaridades da região durante as primeiras décadas do século XX.

ROBERTO FORTES
ROBERTO FORTES, historiador e jornalista, é licenciado em Letras sócio do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.  E-mail: robertofortes@uol.com.br

Blog: https://robertofortes.blogspot.com/


(Direitos Reservados. O Autor autoriza a transcrição total ou parcial deste texto com a devida citação dos créditos).


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