Um dos episódios mais interessantes – e muito pouco estudado – da História do Brasil foi o confronto, no ano de 1534, entre portugueses e castelhanos, por estas bandas da Índias Ocidentais, que ficou conhecido como “A Guerra de Iguape”, cujo protagonista foi o castelhano Rui García Mosquera, importante personagem dos primórdios da América.
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Obelisco do Quarto Centenário de Iguape. |
Quem resgatou esse conflito foi o cronista paraguaio Ruy Díaz de Guzmán (1559-1629) em seu manuscrito “La Argentina”, de 1612, setenta e oito anos após o ocorrido. Vamos conhecer essa fascinante história.
Muito já se escreveu sobre o controvertido Bacharel de Cananeia, identificado pelo historiador Ernesto Young como sendo Cosme Fernandes, mas pouco se fala de Rui Mosquera.
Integrante da expedição de Sebastião Caboto, que tinha por objetivo explorar as riquezas minerais do Rio da Prata, a história de Mosquera se entrelaça com a do Bacharel, e mesmo que o primeiro tenha permanecido por estas bandas somente por dois anos, foi o protagonista da polêmica “Guerra de Iguape”.
NO RIO DA PRATA
Ao chegar ao Rio da Prata em 1526, Caboto fez construir, no ano seguinte, às margens do rio Carcarañá, um forte, de madeira, ao qual chamou de “Sancti Spiritus”, com dois bastiões bem cobertos.
Mandou quatro espanhóis, liderados por um, chamado César, que fossem averiguar o interior da terra para ver se descobriam alguma entrada para o reino do Peru. Três meses depois regressavam os expedicionários, trazendo notícias.
O comandante, então, decidiu subir rio acima, levando consigo cento e dez soldados, deixando no forte sessenta homens sob a liderança do capitão Diego de Bracamonte.
Caboto percorreu rios e terras, não conseguindo o seu intento de encontrar o caminho para as terras dos incas.
Retornando ao “Sancti Spiritus”, decidiu, por fim, regressar à Espanha, deixando no forte os cento e dez soldados sob o comando do capitão Nuño de Lara, do tenente Mendo Rodriguez de Oviedo e do sargento Luís Perez de Bárgas. No rol desses soldados, estavam, entre outros, o capitão Rui García Mosquera e Francisco de Rivera.
Como havia necessidade de mantimentos no forte, Nuño de Lara incumbiu a quarenta soldados, sob o comando de Rui García Mosquera, para que fossem procurar alimento pelas ilhas vizinhas e que retornassem o mais rápido possível com o que encontrassem.
No “Sancti Spiritus”, também estava o soldado Sebastián Hurtado, que saíra com o grupo de Mosquera e era casado com uma linda espanhola chamada Lúcia de Miranda.
A região era dominada pelos índios timbus, liderados por dois irmãos, Mangoré e Siripo.
O primeiro enamorou-se pela espanhola, e tudo fez para conquistá-la, inclusive convencendo o irmão a matar os espanhóis. A princípio, Siripo se recusou a colaborar com o irmão, pois até então as relações com os espanhóis eram boas, mas acabou cedendo.
Um dia, Mangoré, acompanhado por um grupo de jovens indígenas, foi até o “Sancti Spiritus”, sob o pretexto de levar carne, peixe, mel, milho etc, e, demonstrando sinais de amizade, o grupo entrou na fortificação.
À noite, enquanto os espanhóis dormiam, Mangoré sinalizou aos seus comandados, que estavam do lado de fora do forte, que invadiram o local, colocaram fogo na casa de munição e passaram à espada quase todos os soldados.
Nuño de Lara resistiu bravamente, e, mesmo várias vezes flechado, ainda conseguiu matar a muitos, incluindo o dissimulado Mangoré.
Com a morte do irmão, Siripo encantou-se com Lúcia e lhe propôs casamento. Resistindo a princípio, a espanhola acabou cedendo.
Nesse ínterim, Hurtado retornou ao “Sancti Spiritus”, sendo preso por Siripo e condenado à morte. Debaixo dos insistentes apelos de Lúcia, o chefe cedeu e ainda arrumou uma esposa para Hurtado.
O casal de espanhóis, no entanto, passou a se encontrar às escondidas, até que isso chegou ao conhecimento do cacique, que ordenou que fosse queimada a casa onde Lúcia se encontrava, enquanto Hurtado, amarrado a uma alfarrobeira, foi executado pelos indígenas.
Segundo Guzmán, esses fatos aconteceram no ano de 1532. Quando o grupo de quarenta soldados liderados por Mosquera retornou ao “Sancti Spiritus”, tomou conhecimento da destruição praticada pelos timbus.
Vendo os corpos despedaçados de seus companheiros derramaram muitas lágrimas e os enterravam da melhor maneira que puderam. Não sabendo o que poderiam fazer, depois de conversarem, decidiram seguir ao Brasil.
Na mesma embarcação que usaram para buscar alimentos, deram início à viagem, passando pela ilha das Duas Irmãs e entrando no rio de Las Palmas; atravessaram o golfo do Paraná, passaram pela ilha de Martín García e dali para a de São Gabriel, terminando ao lado da ilha de Los Lobos. Por fim, conseguiram alcançar o oceano Atlântico.
Seguindo para o nordeste, atingiram a ilha de Santa Catarina, passaram por São Francisco e barra de Paranaguá, e chegaram a Cananeia.
A CHEGADA EM YGUÁ
Percorrendo o litoral, Mosquera e seu grupo chegaram a uma baía ou braço de mar, “chamada Ygua, vinte e quatro léguas de San Vicente”. Tinham chegado à barra de Icapara (“canal torto”, em tupi). Resolveram se estabelecer no local por ser de “agradável vista”. Logo entabularam amizade com os nativos e com os vizinhos portugueses. Edificaram as suas casas e fizeram plantações.
Viveram ali durante dois anos, sem maiores problemas. Até que apareceu no incipiente povoado um “cavalheiro português”, que Guzmán identifica como “el bachiller Duarte Perez”. O misterioso personagem não veio sozinho: trouxe a sua família, filhos e criados (indígenas). O bacharel se queixou de sua própria nação, Portugal, que havia sido desterrado àquela costa por “el rey D. Manuel” e que passara por inúmeros padecimentos.
O Bacharel falava com certa liberdade, até mais do que deveria. Por isso, o padre Gonçalo Monteiro, governador de São Vicente, notificou o degredado para que fosse cumprir o seu degredo no lugar que “por su rey fué mandado” – Cananeia; e aos castelhanos foi ordenado que, se quisessem permanecer no lugar, deveriam obediência “a su Rey y Señor”, Dom Manuel, a cujo distrito e jurisdição pertenciam aquelas terras.
Teriam trinta dias de prazo para obedecerem ou deixarem o lugar, sob pena de morte e perda de bens.
Os castelhanos responderam que não reconheciam aquela terra como sendo de Portugal, mas sim de Castela, e como tal estavam ali como povoadores em nome do imperador Dom Carlos V, de quem eram vassalos. Não houve, portanto, acordo entre as partes.
Nessa época, apareceu em Cananeia um navio corsário francês. Os castelhanos ficaram sabendo do ocorrido e decidiram se apoderar da embarcação. Chegando às proximidades de Cananeia, o grupo de Mosquera aprisionou dois marinheiros que haviam descido à terra para conseguir alimentos junto aos índios. A noite estava muito escura.
Os castelhanos cercaram o navio francês com várias canoas e jangadas, que conduziam duzentos flecheiros indígenas. Aproximando-se do navio francês, os castelhanos obrigaram os dois marujos a dizerem aos de bordo que vinham com a comida e refresco que tinham ido buscar e que não havia motivo para receio porque tudo estava muito calmo.
Assim esclarecido, os que estavam nas canoas lançaram cordas para poderem dominar o navio. Pulando para dentro da embarcação castelhanos e indígenas, houve aguerrido combate, com os franceses acabando por se renderem. Após a escaramuça, os castelhanos levaram o navio apresado, ficando, dessa maneira, muito bem equipados, com armas e munições.
A GUERRA DE IGUAPE
Os portugueses de São Vicente não toleraram a ousadia dos castelhanos por terem se apoderado daquele porto, Yguá. Atentos a isso, os castelhanos deliberaram o que deveriam fazer para se defenderem de seus adversários.
Ficaram sabendo que dois capitães portugueses, comandando oitenta soldados, com muitos indígenas, estavam vindo para expulsá-los dali, apossarem-se de suas propriedades e puni-los.
Os castelhanos, para se resguardarem, procuraram fortificar o local com trincheiras na parte do mar, por onde os portugueses certamente viriam. Colocaram ali quatro peças de artilharia, e fizeram uma emboscada entre o porto e o local do povoado, colocando vinte soldados e cento e cinquenta índios flecheiros para, assim, combaterem os portugueses.
De fato, a força militar de São Vicente chegou por mar e terra. Os vicentinos marchavam para Yguá com bandeiras e estandartes tremulando nos ares.
Ao passarem perto da emboscada, perceberam a trincheira, que disparou a sua artilharia, dividindo em dois as tropas portuguesas. De um morro, saíram os que estavam na emboscada e lançaram sobre os portugueses tiros de arcabuzes e flecharias, deixando-os desordenados.
Mesmo os portugueses tendo dado alguns tiros de arcabuzes, retiraram-se com toda pressa. Castelhanos e indígenas caíram sobre os portugueses, e, ao passarem por uma passagem estreita onde havia um riacho, houve grande matança, sendo presos alguns portugueses, entre eles, o capitão Pero de Góis, que foi ferido por um tiro de arcabuz.
Comemorando a vitória, os castelhanos não perderam a ocasião e foram até a Vila de São Vicente onde entraram nos arsenais de embarcações do rei, saquearam e roubaram tudo o que puderam.
Depois desse ataque surpresa, voltaram a Yguá, trazendo com eles alguns portugueses descontentes, que favoreceram os castelhanos na empreitada.
Em dois navios, abandonaram o local e foram para a ilha de Santa Catarina, que distava oitenta léguas do rio da Prata, por ser reconhecidamente território da coroa de Castela. O grupo de Mosquera ali permaneceu, até que o capitão Gonzalo de Mendonça os encontrou e os levou com a sua armada.
Dessa invasão de São Vicente, perdeu-se o Livro do Tombo, levado pelos castelhanos de Iguape. Segundo Guzmán, esse conflito deu-se em “el año de 1534”, sendo o primeiro entre cristãos nessas partes das Índias Ocidentais.
No Rio da Prata, Mosquera serviu a diversos governos, chegando a ocupar posições de confiança na tarefa de comandar tropas para castigar os indígenas e conter os portugueses no Brasil em suas invasões.
Depois, já sentindo o peso da idade e cansado das aventuras por aquelas paragens, Mosquera, de acordo com tradições locais resgatadas por Young, decidiu retomar a Iguape por volta de 1577, data que, curiosamente, coincide com a abertura do primeiro Livro do Tombo e com a criação da Freguesia de Nossa Senhora das Neves de Iguape. Teria a volta de Mosquera dado novo impulso ao incipiente povoado? Tudo leva a crer que sim.
Ainda baseado nas tradições, diz Young que Mosquera faleceu depois de alguns anos, sendo seu corpo enterrado debaixo do cruzeiro que ficava em frente à antiga Igreja de Nossa Senhora das Neves, no Icapara.
Esse cruzeiro, esculpido em Portugal num único bloco de pedra, depois passou para a igreja construída no novo local da vila, às margens do Mar Pequeno, e, após muitos anos guardado no Museu de Iguape, foi colocado, em 2000, na Praça Brasil 500 Anos, situada nas imediações do Porto Grande, na Orla do Mar Pequeno, e, em 2008, transladado para a Praça da Basílica, onde se encontra atualmente.
O Bacharel, por sua vez, teria retomado a São Vicente, onde permaneceu algum tempo, recebendo uma sesmaria e, em seguida, retornado a Iguape, onde, segundo a tradição colhida por Young, faleceu e foi enterrado numa cova talhada na rocha, com seu ouro e joias, na elevação geológica conhecida como “Outeiro do Bacharel”.
REFERÊNCIAS:
GUZMÁN, Ruy Diaz. La Argentina. Buenos Aires: Coleccióm Estrada, 1943.
YOUNG, Ernesto Guilherme. Esboço Histórico da Fundação da Cidade de Iguape. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de S. Paulo, Vol. II, 1896.
(Publicado na TRIBUNA DE IGUAPE nº 277, junho/2024)
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ROBERTO FORTES é editor da TRIBUNA DE IGUAPE, autor de “IGUAPE: NOSSA HISTÓRIA” (2000) e sócio do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.
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