A tragédia do Quatinga A tragédia do Quatinga
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A tragédia do Quatinga


Toda a gente da Vila de Iguape estava reunida no Largo do Rosário. Os ânimos se agitavam, gritos histéricos subiam aos ares. Com cordas firmes enrodilhadas aos pescoços, os dois escravos homicidas, tendo o carrasco ao seu lado, dali a instantes seriam sentenciados pelo “assassinato horroroso”.

A tragédia do Quatinga
A tragédia do Quatinga

Recuemos um pouco no tempo para entendermos essa trágica história.

O português Bento José de Figueiredo, como muitos dos que deixaram a terrinha para “fazer a América”, decidiu se estabelecer na próspera Vila de Nossa Senhora das Neves de Iguape, uma das localidades mais ricas e desenvolvidas da então Província de São Paulo. Figueiredo amealhou relativas posses, adquiriu os sítios Quatinga e Aguapeú e casou-se com a jovem Anna Pinto de Faria, filha do sargento-mor Manoel Pinto de Faria, “que era considerado por suas virtudes e posição social, e que deixou uma prole respeitável”.

O sítio Quatinga distava cerca de dezoito quilômetros da Vila de Iguape, situado “no reverso dos morros dos Engenhos”. O casal Bento e Anna viviam felizes ao lado dos três filhos, o mais velho com seis anos, o segundo com três e o terceiro com apenas um ano de idade. Um detalhe: Anna estava grávida do quarto filho.

MANOEL TANOEIRO

O lar do “venturoso casal” seria tragicamente abalado quando apareceu no sítio “em dias do mês de maio ou fins de junho”, do ano de 1837, um português conhecido por Manoel Tanoeiro. Esse misterioso e falante lusitano trazia um crime nas costas: assassinara em Santos um fuão [fulano} Funileiro; no entanto, processado, foi absolvido pelo júri da Capital. Bento de Figueiredo ignorava esse detalhe importante da vida de seu patrício. Manoel Tanoeiro apareceu no Quatinga e pediu abrigo a Bento sob o pretexto de que tentavam imputar-lhe um crime de tentativa de roubo na Alfândega de Santos. Sensibilizado com a história de Tanoeiro, Bento de Figueiredo não apenas o abrigou em sua casa, como “o tornou conhecedor dos recantos dela, de seus móveis, jóias e até do dinheiro em ouro e boa espécie” que guardava em sua residência.

Na memória em que registrou essa tragédia, Joaquim Carneiro da Silva Braga escreveu:

“Infeliz! Não sabia que preparava o caminho do seu suplício! Não sabia que desafiava com a sua confiança a cobiça do tigre que tinha de engolfar-se em seu sangue, que afiava na pedra da inveja o punhal homicida que tinha de atravessar-lhe o generoso coração; o machado que tinha de derribar o frondoso tronco de envolto com os tenros ramos de tão protetora árvore”. (1)

Como o leão que afaga a presa, Manoel Tanoeiro foi prendendo o seu protetor em sua malha pérfida.

Bento de Figueiredo possuía alguns escravos em seu sítio: dois de nação africana, Domingos (“preto retinto, bem apessoado, musculoso, de força hercúlea, mostrando ter 30 anos de idade”), e Manoel (“velhote, quinquagenário, magro e bruto”); mais ainda a escrava Dorotéia (“crioula, de cor fula, regulando 25 anos de idade, esperta, mucama da casa”); Vitorino (“crioulo, de 15 anos, ativo e inteligente”); e mais “dous crioulinhos regulando entre 12 e 14 anos de idade”.

Dominado pela cobiça, Manoel Tanoeiro passou a seduzir os dois africanos com promessa de liberdade e de dinheiro. Arquitetou o assassinato da família de Bento, com o roubo de seus bens. Depois fugiriam para o interior da província, onde venderiam Doroteia e os molequinhos e repartiriam o dinheiro. Dessa maneira, os africanos teriam condições de retornar à “terra de seus nascimentos”.

A TRAGÉDIA

E chegou o sangrento dia 17 de agosto de 1837.

Nesse dia, Bento de Figueiredo, com a esposa, pretendia se dirigir a um sítio vizinho, e convidou também o seu patrício. Este, vendo que chegara a ocasião propícia, avisou a Domingos e Manoel para esperarem em lugar conveniente. Quando o casal se aproximou de uma roçada, vieram ao seu encontro os dois africanos armados de foices. Manoel Tanoeiro foi o primeiro a dar uma lançada em seu benfeitor; os escravos consumaram à foiçadas o assassinato de Bento.

Anna, assustada e aflita, abraçou-se ao corpo do esposo tão amado, que jazia sem vida no solo ensanguentado. Os escravos arrancaram-na dali e conduziram-na à casa-grande para entregar-lhes as chaves das canastras. Anna obedeceu e deu-lhes as chaves, lançando-se aos braços de Doroteia, a quem pediu proteção. Mas os africanos arrastaram-na de volta até o corpo de Bento, onde estava Tanoeiro, que tinha ficado junto ao defunto para retirá-lo do caminho. Ali, a pobre senhora foi também cruelmente assassinada a golpes de foices. Estava no último mês de gravidez.

Os perversos escravos enterraram os dois corpos e deixaram para o dia seguinte “a continuação de sua obra de destruição”.

No dia seguinte, sedentos de sangue, deram fim aos três filhos do casal. Despiram o mais velho e mataram-no a golpes de enxada, arrancando-lhe o crânio. Os outros dois foram cruelmente afogados no tanque do ribeirão. Igual sorte teriam a escrava Doroteia e os crioulinhos se dessem com as línguas nos dentes.

A FUGA DE TANOEIRO

Tanoeiro, no alto de sua frieza, aprontou a matalotagem, recolheu em sacos os despojos do roubo e seguiu viagem, juntamente com os seis escravos. Mas, velhaco e calculista, valeu-se de um ardil: deixou-se ficar para trás, meteu-se no meio do mato e se escondeu. Os negros ficaram esperando pelo português durante algum tempo no caminho, até que veio a noite e decidiram retornar ao Quatinga. Na mesma noite, Tanoeiro foi à Vila de Iguape e, no dia seguinte, partiu para Santos.

Os escravos, desorientados, foram ficando no sítio, enquanto o tempo ia passando. Quando alguém aparecia por ali e perguntava de seus senhores, respondiam que eles se achavam no sítio Aguapeú. Os familiares dos mortos desconfiaram que algo de sinistro havia acontecido. Assim, no dia 1º de novembro, foram até o Quatinga, onde encontraram só um dos escravos, e este disse que Bento e a família se encontravam no outro sítio. Como os parentes já haviam procurado em vão no Aguapeú e, estando evidente que o escravo mentia, agarraram-no e amarraram-no, ao que o negro se viu obrigado a confessar o bárbaro crime e mostrar as sepulturas.

Nesse mesmo dia, foram presos os outros dois crioulinhos. Mas os africanos, autores do massacre, e a escrava Doroteia só foram localizados dois dias depois, no engenho do capitão Francisco Carneiro da Silva Braga, abastado “senhor do arroz”, mais exatamente na senzala de um dos escravos do capitão, por volta das nove horas da noite, quando ali chegaram pedindo pousada e comida. O capitão Braga, informado por seu escravo que os assassinos estavam em sua propriedade, imediatamente mandou chamar o seu vizinho, alferes José Xavier de Almeida Cruz, que rapidamente armou a sua escravatura e veio cercar a senzala onde se achavam os criminosos.

Devidamente orientado pelo capitão Braga, o seu escravo ficou entretendo os dois africanos. A senzala foi cercada e os negros intimados a abrirem a porta, ao que Domingos se opôs. Por fim, o alferes Xavier entrou na senzala e sobre ele se lançou Domingos com uma espingarda em punho, atracando-se com Xavier. Nesse momento, a arma disparou um tiro para o teto. Os demais escravos de Xavier invadiram a senzala e dominaram os assassinos, Domingos e Manoel, e a escrava Doroteia, não depois de muita luta.

A PUNIÇÃO

Os três foram presos da cadeia da vila e fortemente agrilhoados com grossas correntes. A notícia do bárbaro assassinato provocou uma excitação e comoção nunca antes vistas na Vila de Iguape. Todo o povo, pessoas gradas e oficiais da Guarda Nacional se revezavam para guardar a cadeia.

Os escravos confessaram os crimes, com todos os terríveis detalhes. Foram processados e condenados. Domingos e Manoel terminaram os seus dias supliciados na forca, erguida no Largo do Rosário. A escrava Doroteia e Vitorino foram amarrados no pelourinho e severamente açoitados. Juntamente com os crioulinhos, que acabaram absolvidos, Doroteia e Vitorino foram entregues aos parentes das vítimas para serem vendidos à custa de pagamento de credores. Quem presidiu o Tribunal do Júri foi o desembargador Joaquim Fermino Pereira Jorge, que, pelo fato de ter absolvido a uns e imposto “pequenas penas” (no caso, os açoites) a outros, foi duramente censurado pelo povo e correu até perigo de vida.

E o que aconteceu com Manoel Tanoeiro, o mentor do massacre?

O facínora achava-se, nessa altura, em São Paulo, escondido numa casa da rua Santa Teresa. O chefe de polícia localizou o seu paradeiro e cercou a casa com uma tropa de linha. Quando Tanoeiro saltou por uma janela à rua, alguém gritou: “Fogo! Atira!”, ao que um soldado alvejou o português pelas costas, indo a bala cravar-se na parede do convento, depois de atravessar o coração de Tanoeiro, que morreu na hora. O soldado foi processado “pro formula regis”. Absolvido, recebeu ainda um prêmio em dinheiro oferecido pelos familiares de Bento de Figueiredo.

E assim terminou essa tragédia que enlutou o Vale do Ribeira e que ficou durante muito tempo gravada na memória dos valerribeirenses mais antigos.

NOTA

(1) Memória escrita por Joaquim Carneiro da Silva Braga e publicada no “Commercio de Iguape”, nº 146, de 6-1-1879 e nº 147, de 12-1-1879.

ROBERTO FORTES
ROBERTO FORTES, historiador e jornalista, é licenciado em Letras e sócio do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.  E-mail: robertofortes@uol.com.br


(Direitos Reservados. O Autor autoriza a transcrição total ou parcial deste texto com a devida citação dos créditos).

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