A Coluna Cotidiano Psi de hoje, através da psicóloga Michele Gouveia, traz uma importante reflexão sobre como lidar com o luto.
Nestes tempos de pandemia da COVID-19,
temos sido impactados pelo grande número de mortes, seja de pessoas amadas, seja
pelo sofrimento de amigos que perderam familiares. Os rituais de despedida foram
adaptados às novas possibilidades como velórios virtuais, novenas e memoriais
nas redes sociais.
Nesta semana, no Brasil, atingimos o
trágico número de 400 mil óbitos causados pela COVID-19, ocupando o segundo
lugar em países que tiveram mais óbitos no mundo, ao lado dos EUA que despertou
e investiu em pesquisa, desenvolvimento de vacinas e cronogramas, tendo
vacinado com a primeira dose 42% da população, enquanto, no Brasil, estamos com
19,4%.
Os diversos descasos, que envolvem a
falta de continuidade de programas que garantam que pessoas desempregadas, em
situação de vulnerabilidade, não passem fome, têm feito com que além da perda
de uma pessoa amada, essas pessoas acabam não tendo o tempo mínimo de
elaboração dessa perda.
A luta pela sobrevivência, em algumas
famílias, para ter o pão de cada dia, faz pensar sobre os efeitos tardios dos
lutos interrompidos que nossa sociedade terá que lidar. Entendemos que esse
desafio precisa ser enfrentado com a ampliação do cuidado da nossa saúde mental
e favorecendo o reconhecimento da perda significativa das pessoas que se foram,
além do contínuo esforço para que vidas sejam valorizadas e preservadas.
A transmissão do saber dos idosos, a
necessidade de aprendizagem dos mais novos, tudo isso potencializa um
crescimento sustentável que faz com que os países desenvolvidos tenham maiores
taxas de expetativa de vida.
A animação “A caminho da Lua” do
diretor Glen Keane, indicada ao Oscar 2021, disponível na Netflix, aborda, a
partir da história de uma garota, o luto pelo falecimento da mãe e também o
processo de luto do pai. O filme mostra como o processo de luto é lento, podendo
ser mais intenso em alguns casos, e que existem várias formas de lidar com a
perda. Outro ponto forte está na ideia de que perder uma pessoa amada acaba por
transformar a vida. Nessa história, a garota e o pai passam por um longo
período de luto, até que aos poucos vão se permitindo viver novas experiências
e a aceitar a realidade da perda. Dessa forma, o pai recomeça sua vida amorosa
e a garota vai descobrindo que o amor e a lembrança de sua mãe permanecem, e
que a vida continua repleta de possibilidades e transformações, permitindo
descobrir novas emoções, novas experiências e diversas formas viver a vida.
Compreende-se no campo da psicologia e
psicanálise que o luto é uma reação à perda de algo significativo na vida da
pessoa, podendo ser uma pessoa amada, um trabalho que investiu muita energia ou
uma relação amorosa etc. Além de uma experiência singular, o luto “é um
trabalho psiquíco doloroso, visto que a realidade mostrou que o objeto amado
não existe mais, e então exige que toda a libido seja retirada de suas conexões
com esse objeto” e que após a consumação do trabalho do luto, a pessoa fica
novamente desimpedida para investir em novos objetos amorosos, segundo Freud no
texto “Luto e Melancolia”, de 1915.
Sendo o luto uma experiência singular,
o tempo e a forma de vivenciá-lo vai variar bastante. Cada situação é permeada
de variáveis incalculáveis: a intensidade do vínculo (o quanto esta pessoa era
importante), o momento da perda (idade, se está em situação de vulnerabilidade
social, uma perda abrupta, a impossibilidade de despedida), enfim, são muitos
aspectos externos e internos que podem influenciar um processo de luto, por
isso, entendemos que é impossível determinar uma forma padrão.
Mas, o que podemos fazer por alguém
que está em luto? Podemos acolher, se colocar à disposição dos que perderam;
verificar se esta pessoa possui uma rede de apoio, caso contrário, buscar
montar uma rede que permita acompanhar se a pessoa está conseguindo se alimentar;
se está cuidando da sua higiene minimamente (se tem roupas lavadas, se precisa
de ajuda na organização da casa); se ela tem com quem conversar e possibilitar
espaços de fala ou mesmo de contato para ver como está.
Infelizmente, nestes tempos de
pandemia, o contato físico que é tão importante para o acolhimento das pessoas
enlutadas está restrito, além do compartilhamento coletivo da despedida nos
velórios. As pessoas que sentem por não poderem se despedir têm encontrado
alternativas on-line para fazer novenas e até mesmo o velório virtual, onde
podem chorar, falar, escutar junto dos queridos o quanto aquela perda é
significativa. Isso faz toda a diferença. Quem puder ajudar as famílias a se
encontrarem, por exemplo, dessa forma on-line, ajudará o processo de luto delas,
mas, é claro, é preciso respeitar o que é possível para cada um.
E se perdermos uma pessoa querida, o
que podemos fazer com a nossa dor? Primeiro, se permitir chorar ou não, pois
nem todos choram da mesma forma, cada um expressa seu sentimento de um jeito,
alguns plantando, olhando o horizonte, sentido o frio, contando suas memórias;
outros sentem o calor da roupa, o cheiro dos objetos guardados; outros olham as
fotos e se recordam dos belos momentos. O fato é se permitir sentir, olhar para
isso, entender que é necessário ter o tempo para este processo. Não dá para
fazer de conta que nada aconteceu, essa negação da dor impossibilita a sua elaboração
e traz consequências, como lutos tardios que muitas vezes desencadeiam sintomas
depressivos ou mesmo uma impossibilidade de transmitir para os filhos pequenos
o processo de perda e a transformação que ele opera.
A criança que tem a fala sobre a perda
de uma pessoa querida negada pela família, passa a perceber a tristeza do luto
mal elaborado. Ela sente a tristeza sem entender de onde ela vem. Assim, devido
à ausência do reconhecimento da origem da tristeza, fica sem condições de
elaborar, resultando em sintomas que podem ser físicos e comportamentais.
O luto velado (que não se fala, que se
esconde) pode deixar uma marca da morte incompreendida e difícil de ser
superada, em vez de ser algo doído que faz parte da vida. Apenas com muito
trabalho psíquico torna-se possível superar essa marca, logo, a criança pode crescer
sem poder elaborar essa dor e, por isso, apresentar quadros patológicos.
É importante compreender que no luto
normal, a pessoa, no seu tempo, vai ressignificar a perda, transformando a dor
em lembranças. Porém, quando o luto não se processa, e a pessoa não encontra
formas de elaborar a perda, aceitar que a pessoa morreu, isso pode se
transformar em uma depressão ou em um agravante a eventuais transtornos mentais
existentes. Nestes casos, é necessário buscar ajuda para que este luto possa
ser trabalhado.
Michele Gouveia é Psicanalista, Psicóloga Clínica e Consultora de Carreira, com mestrado em Psicologia Social e Especialização Clínica em Psicanálise e Linguagem pela PUC-SP.
E-mail: michelegouveia.psi@gmail.com
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