A cidade amanheceu inquieta. O senhor prefeito, auxiliado, como sempre, pelo doutor delegado, inseparável correligionário, ordenou que se construísse, em tempo recorde, um espaçoso palanque no centro do Largo da Matriz para que o notório filho da terra fosse homenageado por todos convenientemente. Nenhum detalhe fora esquecido, e dos preparativos se empenharam também o meritíssimo juiz e o imaculado vigário, pois que uma solenidade daquele porte merecia ser assistida pela nata da sociedade – e também pelo povo.
Vapor "Cândido Rodrigues", década de 1920
Segundo as últimas informações chegadas aos ouvidos
do prefeito, o notório escritor viria no vapor do meio-dia. Toda a extensão do porto fora previamente ornamentada,
os prédios do cais devidamente caiados, debastado o mato das ruas centrais e
lavados todos os monumentos principais da cidade, já que nas últimas semanas
revoadas de pombos tinham prestado a sua colaboração na tarefa oposta.
O delegado – notava-se que estava bastante
preocupado, o rosto sempre banhado de suor – não desgrudava do prefeito, que, é
bom dizer, não se sentia muito à vontade com aquele homenzarrão bigodudo lhe importunando
o tempo todo. Melhor proveito traria para todos se ficasse cuidando de seus
presos. Mas perder um correligionário daquela envergadura, isso não faria, daí
a ter de resignar-se com aquela adulação constante, ainda porque as eleições
municipais avizinhavam-se e todo voto seria muito bem-vindo.
Nos botequim, o comentário era geral. O português
dono da bodega, com aquele seu olhar sempre filosófico, resmungou alguns
ora-ora-pois, coçou a calva proeminente e soltou uns comentários para os seus
fregueses, que pareciam à espera das palavras abalizadas do bodegueiro. Que
aquela festança toda, regada a muito falatório e mentirices, ainda daria em
coisas ruins, isso ele pressentia desde que soubera que o prefeito aproveitaria
a visita do ilustre filho da terra para homenageá-lo e, destarte, angariar as
simpatias do eleitorado, já não mais fiel como nos velhos tempos. Isso não são
coisas que gentes direitas inventem, ora homessa, pois que o conspícuo escritor
nunca se metera em mutretas políticas e, logicamente, sentir-se-á constrangido
vendo a sua figura ser utilizada para fins de dividendos eleitorais.
Que o bodegueiro estava certo ninguém duvidava, e
ficaram esperando o desenrolar dos acontecimentos, pois que coisas ruins
viriam, isso viriam.
Por todos os espaços do porto comprimia-se uma
multidão nunca antes vista na história da cidade, nem mesmo quando aquele
governador ilustre, dos tempos da intervenção, passou por ali. O prefeito
esfregava as mãos com incontido prazer, contabilizando de si para consigo os
votos presentes, coisa que o delegado, junto dele, parecia captar e lhe imitava
o gesto.
Nas últimas eleições, quase não conseguira passar
pelo crivo das urnas. Não fossem aqueles votos arranjados na última hora
através do presidente da mesa de apuração, não conseguiria retornar ao paço
municipal nem com todas as rezas e trabalhos feitos pela benzedeira da cidade.
Lá pela hora do almoço, por detrás das ilhotas que
pontilhavam na extensão do lagamar, a multidão avistou o vapor que se aproximava
lentamente do cais. Foguetes pipocavam nos ares. A banda caprichou nos
dobrados, sob a batuta do tarimbado maestro. Gritos exaltados de viva! e salve! se elevaram aos céus, e somente quem fosse privado de
audição não ouviria. No palanque, o prefeito aguardava com ansiedade a chegada
o ilustre passageiro, não tirando de jeito nenhum os olhos do canal.
Na hora do desembarque, foi necessário o delegado
mobilizar os seus homens para manter a ordem, e essa foi a única hora em que
ficou longe do prefeito. Todos queriam ver de perto o ilustre filho da terra
que, após muitos anos, retornava trazendo na bagagem a fama de renomado
escritor.
Foi quando surgiu na plataforma um homem baixo,
acanhado, óculos grossos caindo no nariz avantajado, carregando uma pesada
mala. Era o único passageiro do vapor.
Levaram-no quase arrastado ao palanque, onde
recebeu todo tipo de saudação. Toques de banda. Discursos. Abraços e tapinhas
nas costas. A chave da cidade. O diploma de cidadão emérito. Os votos de
reconhecimento de toda a população em honra de seu filho mais notório. O pequeno
homem não teve qualquer oportunidade para retribuir tanta gentileza, mas em seu
íntimo agradecia a toda aquela gente hospitaleira.
Quando o prefeito estava pelo meio do discurso, o
chefe dos correios passou correndo pelo grosso da multidão, subiu ao palanque
como um desesperado e, detendo-se diante do alcaide, entregou-lhe o telegrama.
O discurso teve que ficar pela metade. O ilustre
escritor comunicava que, devido a motivos imperiosos e superiores à sua
vontade, chegaria à cidade no vapor do dia seguinte.
Enquanto isso, no palanque, o recém-chegado não se cansava
de agradecer àquela gente tão boa e acreditou que conseguiria vender na cidade
todos os produtos que trazia.
ROBERTO FORTES, escritor e poeta, é licenciado em Letras e autor do livro de contos “O Tucano de Ouro - Crônicas da Jureia” (2012), além de centenas de crônicas e artigos publicados na imprensa do Vale do Ribeira. E-mail: robertofortes@uol.com.br
(Direitos
Reservados. O Autor autoriza a transcrição total ou parcial deste texto com a
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