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A Musa Impassível


Vários barcos estavam ancorados no cais do Porto Grande naquela tarde monótona. No prédio em frente, onde funcionava o escritório da Companhia de Navegação Fluvial Sul Paulista, funcionários executavam os seus afazeres diários. No balcão, dois ou três homens, vestidos com roupas de viagem, compravam passagens para o próximo vapor com destino à vila de Santo Antônio do Juquiá. Lá pegariam o trem da Southern São Paulo Railway para Santos.


Vapor Vicente de Carvalho
Vapor Vicente de Carvalho


O vapor Vicente de Carvalho estava aportado no cais há cerca de duas horas. A marinhagem terminava os últimos preparativos para a viagem. O foguista verificava a quantidade de lenha e inspecionava as válvulas da caldeira. O despenseiro checava os víveres para as diversas refeições durante o percurso. O capitão recebera telegrama do porto de Cananeia confirmando que os práticos da barra tinham voltado da greve. Tudo parecia adequado a uma viagem tranquila e sem maiores incidentes.

O Vicente de Carvalho era o melhor vapor da Companhia Fluvial. Tinha capacidade para cerca de quarenta passageiros, em seus camarotes. Levava o nome do poeta santista, que não por coincidência era o presidente da companhia. No rol de seus passageiros ilustres, destacava-se Washington Luiz, presidente do Estado de São Paulo. Inaugurado em 14 de fevereiro de 1893 com o nome de Izabel, o vapor pertencera à Companhia Sul Paulista de Navegação e Mineração, fundada em 1891, que pertencia ao empresário Walter Hammond e tinha como gerente o engenheiro inglês Ernest William Young, que depois escreveria algumas ricas páginas sobre a história local. Anos mais tarde, o Izabel foi adquirido pela companhia de Vicente de Carvalho. Foi o primeiro vapor de roda na popa que sulcou as águas da Ribeira. Media 35 metros de comprimento total, por 6,8 metros de largura na maior seção, sendo 1,5 metro a altura de seu casco, com o calado vazio de 42 centímetros.

*

Num banco de madeira próximo ao cais, uma moça, bem vestida e de boa estampa, olhava para o vapor. Chamava-se Helena. Professora normalista formada pela Escola Normal de Botucatu, era filha do major Zacharias, influente membro do Partido Republicano Paulista, dono de fazenda de arroz e de uma cadeira cativa na Câmara Municipal. As pessoas que passavam pelas imediações do cais certamente se perguntavam o que a professorinha estaria fazendo ali, sozinha, àquela hora da tarde, sem a companhia da senhora sua mãe ou de sua inseparável irmã.

Elísio, o caixa da Companhia Fluvial, entre uma e outra passagem vendida, também parecia demonstrar interesse pela presença da professorinha, pois disfarçava a toda hora e olhava na direção da moça. Essa observação persistente não era sem razão. No mês passado, quando a professorinha comprava passagens para Subauma, ele dissera-lhe, com sua voz mansa, que sentia por ela uma sincera afeição. Helena disfarçou para que a irmã não percebesse.

– Sim, duas passagens para Subauma! Marque na conta de nosso pai – disse a professorinha, a voz segura, o ar impassível.

Elísio ficou ruborizado, as faces esbraseadas. Percebera que fora infeliz em sua declaração de amor; tanto o local como a ocasião foram inadequados. O que nem o caixa, tampouco Helena, perceberam foi o olhar apaixonado lançado a Elísio por Heloísa, a irmã. Olhar apaixonado e sincero, que ficou para sempre perdido entre as paredes de pedra e cal do prédio da Companhia Fluvial.

Helena olhava para o convés do vapor. Não. Helena não olhava para o convés do vapor. Olhava, sim, para o belo rapaz que, no convés do vapor, dirigia a ela um sorriso sedutor. Bráulio era o seu nome. Trabalhava há quatro meses como foguista do Vicente de Carvalho. No mês passado, durante a viagem de Helena e Heloísa ao Subauma, numa parada para abastecimento de lenha, Bráulio aproveitou-se da ocasião em que vira Helena sozinha debruçada na amurada do convés.

– A professorinha Helena é a flor mais viçosa que já viajou pelas águas da Ribeira! – disse Bráulio, sem qualquer constrangimento.

Helena, de temperamento sempre impassível, não pode conter o rubor, denunciado em seu rosto pálido. Bráulio percebeu a inquietação da moça. Depois desse dia passaram a se corresponder através de bilhetes, levados por um moleque, que dividia o quarto de pensão com Bráulio. Começaram a namorar às escondidas. Nem a mãe ou a irmã notaram qualquer alteração no comportamento de Helena. Isso era natural. Seu pai, apreciador de Francisca Júlia, chamava a filha de “Musa Impassível”. Helena, sempre serena, a demonstrar em seu semblante a impassibilidade que a poetisa de Xiririca soube imprimir com maestria em seus “Mármores”, até achava graça no título dado a ela pelo pai. A impassível Helena.

O observador mais atento não perceberia apenas uma moça de boa aparência, sentada num banco, à beira do cais. Aos pés de Helena, seria observada também uma bolsa de viagem. Helena e Bráulio haviam planejado uma fuga, esboçada nos bilhetes levados e trazidos pelo moleque. Ela embarcaria naquela tarde no Vicente de Carvalho rumo a Juquiá. Lá chegando, pernoitaria no pequeno hotel da vila e, logo pela manhã, tomaria o trem para Santos. Bráulio também tomaria o mesmo trem. Em seu lugar, nas caldeiras, deixaria o moleque. Só quando o vapor atracasse em Iguape dariam por sua falta. Em Santos, Bráulio arrumaria algum trabalho nas Docas. Helena daria aulas particulares, até conseguir ingressar por concurso em alguma escola municipal.

*

O vapor emitiu um forte apito, chamando os passageiros para o embarque. Bráulio, no convés, acenava para Helena, que continuava sentada no banco, a olhar para o rapaz com uma expressão distante. Bráulio começava a se desesperar. Helena não demonstrava a intenção de embarcar no vapor. Teria desistido de deixar para trás aquela vida provinciana e construir uma nova vida ao lado dele? Bráulio estava tomado pelo desespero.

Helena não mais discernia no convés a figura de rapaz, que gesticulava desesperadamente para ela. À mente da professorinha só ecoavam as palavras do pai, ditas sempre que notava o seu olhar distante.

– Minha impassível Helena!

NOTA

Esta ficção histórica faz parte do livro “Os Mistério do Vale - Crônicas Ribeirenses”, a ser lançado brevemente.

ROBERTO FORTES
ROBERTO FORTES, historiador e jornalista, é licenciado em Letras e sócio do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.  E-mail: robertofortes@uol.com.br





(Direitos Reservados. O Autor autoriza a transcrição total ou parcial deste texto com a devida citação dos créditos).

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