A não-existência programada: políticas curriculares e a diversidade étnico-racial e cultural
Entre os desafios que compõem a
prática docente na educação básica o maior deles é acolher a diversidade. Essa
dificuldade tem raízes na forma como a sociedade organiza-se, nas relações
contraditórias que mantém entre capital e trabalho, raça e gênero, com reflexos
nas práticas curriculares no cotidiano das escolas.
As reflexões em torno das
relações entre processos educacionais com dimensões amplas de estruturação da
sociedade capitalista ainda carecem de tratamento na escola básica, tendo em
vista a poderosa mensagem social que veicula, a partir dos conteúdos que não
questiona, e “a importância da educação como condição prévia para qualquer
actividade política” (Aplle, 2001, p. 35).
A questão central a consumir
parcela considerável de docentes, técnicos e teóricos é como proceder, a fim de
que o conteúdo escolar seja absorvido de modo mais rápido e eficaz pelo
conjunto de estudantes. Essa centralidade dos métodos mantém estreita ligação
com o esvaziamento da dimensão política nos processos educacionais.
Na análise
das sociedades capitalistas, Apple (2001) evidencia que um dos meios mais
importantes pelos quais as empresas enfrentam as “crises” econômicas, na
obtenção e manutenção de seus lucros, é voltarem-se para o aumento dos índices
de exploração de sua força de trabalho.
Nesse panorama, Estado e escola são
articulados na mediação das relações com o capital. Portanto, “[...] as
políticas governamentais devem corresponder aos requisitos do capital. As
práticas educativas devem ser enquadradas no trabalho [...]” (Apple, 2001, 47).
A escola não é a única
instituição agenciada pela promíscua relação entre Estado e capital, no
entanto, assume um papel estratégico. De acordo com Apple (2001), as escolas
funcionam também como um dos modos principais de produção de mercadorias
culturais exigidas pela sociedade capitalista. Nos dizeres do autor, o que a
escola produz – a mercadoria do conhecimento –, torna-se um produto
economicamente vital. E é nesta perspectiva que o Estado assume um papel
fundamental integrando a escola na conjuntura produtiva:
[...] o Estado vai assumir um
papel cada vez mais preponderante, não apenas na verdadeira organização da
produção no plano económico, mas também no desempenho desse mesmo papel no
plano "cultural". Intervirá activamente garantindo a produção de
determinados tipos de mercadorias culturais (neste caso, conhecimento técnico)
patrocinando sanções, programas, instituições e pessoas relacionadas com a
maximização de tal processo de produção mercantil. (APPLE, 2001, p. 113)
Para o autor, no seio da posição
estratégica que assumem os aparelhos educativos, os laços que unem Estado e
capital estão ancorados no controle da “economia” - pelo conhecimento
materialmente produtivo - e no controle da “cultura” - pela seletividade do que
ensinar e dos valores a legitimar. Nesse contexto, não há espaço nas práticas
curriculares para as histórias de luta dos trabalhadores, das mulheres,
tampouco, para os processos de produção do conhecimento, histórias e culturas
africanas, afrobrasileiras e indígenas.
A estrutura ideológica própria do
colonialismo incorporou a heterogeneidade dos povos ao universo europeu,
criando uma única configuração a ser reconhecida e valorizada. O currículo
materializado nas escolas continua centrado na visão eurocêntrica de mundo,
reduzindo a diversidade a um único paradigma. O fato de toda a base do
conhecimento ocidental veiculado, das variadas áreas de conhecimento, ter
origem no continente europeu é posto e aceito com naturalidade.
A faceta mais
cruel dessa dinâmica foi a redefinição de padrões, tendo como pano de fundo a
dissolução dos conhecimentos produzidos pela diversidade de povos, além da
inferiorização de seus saberes e formas de transmissão.
A hierarquização de
culturas mantém-se intacta nesse processo que resulta de uma história de
dominação, exploração e colonialismo. Como afirma Barros (2016, p. 21), o
racismo não surge apenas como um fenômeno psíquico, pois, é também mecanismo
fundante de um sistema ideológico de dominação e estruturação das relações poder,
articulado no plano da exploração econômica e fortalecido pela seleção de tipos
específicos de capital cultural.
Em pesquisa realizada no contexto
da nossa dissertação de mestrado, buscamos analisar a engenharia de controle
curricular exercida pelas agencias estaduais educacionais paulistas e o
tratamento oferecido à diversidade étnico-racial e cultural no currículo
oficial para os anos iniciais do ensino fundamental. O estudo buscou evidenciar
como a atuação das agências estaduais tem ampliado o que denominamos
discriminação planejada, estruturada e mantida pela “tradição seletiva” do
currículo oficial.
Nas análises realizadas duas
situações aparecem como limitadoras no processo de efetiva implementação das
histórias e culturas africanas e afrobrasileiras, como prescreve a Lei
10.639/03 (BRASIL, 2003): a) a “tradição seletiva” do currículo oficial
paulista no material didático que disponibiliza; b) o controle exercido pela
política de avaliação externa, atrelada às expectativas de aprendizagem do
currículo oficial, que não considera a diversidade étnico-racial e cultural.
O sistema de controle observado
encontra-se incorporado na forma articulada do currículo oficial: que determina
os objetivos de ensino, o conteúdo, o planejamento das aulas e os critérios de
avalição. Com estrutura que envolve programas de formação, materiais didáticos,
avaliações externas e política de bonificação, o governo estadual paulista
estabelece um direcionamento quase irrestrito sobre as práticas curriculares.
As consequências diretas dessa dinâmica no cotidiano das escolas são: a
alienação do trabalho docente e a exclusão sistemática que o currículo oficial
apresenta.
São 14 anos desde a promulgação
da Lei 10.639/03, no entanto, nos materiais analisados - Orientações
curriculares para o Ensino de história – Anos Iniciais (São Paulo, 2013) e Guia
de Planejamento e orientações ao professor - Sociedade e Natureza (São Paulo,
2015), reunindo as disciplinas de História, Geografia e Ciências - não foram
observadas expectativas de aprendizagem que fazem referência direta à temática
da diversidade étnico-racial e cultural nos anos iniciais do ensino
fundamental. Além disso, dedica 68,9% das 174 expectativas de aprendizagem à
disciplina de ciências naturais.
No panorama que se formou no
contexto da pesquisa, três principais considerações são possíveis: Primeira - O
currículo oficial das escolas públicas paulistas para o ensino de história nos
anos iniciais não apresenta expectativas de aprendizagem que considerem
diretamente a diversidade étnico-racial e cultural. E ao proceder desse modo,
descumpre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) 9.394/96 em
seu Artigo 26 A e todo um conjunto de dispositivos legais que primam por uma
política educacional voltada para a afirmação da diversidade cultural e para a
educação das relações étnico-raciais nas escolas; Segunda – O currículo oficial
paulista privilegia em suas expectativas de aprendizagem para o ensino de
história nos anos iniciais os aspectos procedimentais do conhecimento, sugerindo
um processo de formação voltado para a execução de tarefas; Terceira – O
currículo oficial paulista para os anos iniciais desenvolve uma sofisticada
engenharia de controle da prática docente, privilegiando os conteúdos das
disciplinas língua portuguesa e matemática, alvos da avaliação externa, além da
disciplina ciências naturais.
Observa-se, portanto, uma
política curricular que seleciona, organiza e controla conteúdos,
materializando a exclusão nas práticas curriculares. Com essa configuração,
repõe a discriminação ao nível do planejamento diário, com o intuito de
enfatizar tipos específicos de “mercadorias culturais”, enquadradas na
estrutura produtiva capitalista, que determina os espaços sociais a serem
ocupados pelos estudantes das escolas públicas.
O baixo grau de
institucionalização da Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003) sinaliza que suas
diretrizes não são prioridades para a Secretaria Estadual de Educação de São
Paulo.
No contexto da educaçãopública estadual paulista a discriminação não é apenas produto dos conflitosentre as demandas que envolvem as questões de classe, gênero e raça. Ela ésistematicamente planejada, fruto da negação, das omissões e dos consensos quese estabelecem pelo silenciamento de histórias e práticas socioculturais, impondo
à grande maioria dos estudantes que atende uma “não-existência”.
Marlene Oliveira de Brito é
Pedagoga (Unesp/Bauru), com especialização em Educação e Relações Raciais
(UFF/Niterói) e Mestrado em Ensino ( Unesp/Bauru)
REFERÊNCIAS
APPLE, Michael Whitman. Educação
e Poder. Porto: Porto Editora, 2001. Tradução João Menelau Paraskeva.
BARROS, Ronaldo Crispin Sena.
Políticas de Promoção da Igualdade Racial: Um novo redesenho das políticas
públicas no Brasil. In SEPPIR - PROMOVENDO A IGUALDADE
RACIAL: Para Um Brasil Sem Racismo. Katia Regina da Costa Santos & Edileuza
Penha de Souza (Orgs). 1ª Edição: Brasília, 2016.
BRASIL. Presidência da República. Lei
n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da
temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras
providências. Brasília, 2003.
_____. Secretaria Especial de
Política de Promoção de Igualdade Racial. Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. SEPPIR. Brasília, 2004.
SÃO PAULO. Secretaria da
Educação-CGEB. Orientações Curriculares do Estado de São Paulo – Ensino
Fundamental – Anos Iniciais. Versão Preliminar. Ciências da Natureza e
Ciências Humanas: geografia e história. São Paulo, 2013.
_____. Secretaria da Educação. Guia
de Planejamento e Orientações ao Professor- 5º ano ––– Volume 01.Versão
Preliminar. MEMÓRIAS, CAMINHOS E DESCOBERTAS- Sociedade e Natureza. São Paulo,
2015.
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