A greve geral contra as reformas
Nos anos 90, Antonio Tabucchi,
grande escritor italiano e profundo conhecedor de Fernando Pessoa e da cultura
luso-brasileira em geral, e Umberto Eco, um dos maiores intelectuais do século,
travaram um interessante debate nas páginas da revista italiana Micromega.
Tabucchi defendia o engajamento e a análise crítica e direta dos acontecimentos
histórico-políticos, enquanto Eco sustentava a tese do distanciamento
necessário para o julgamento imparcial e aprofundado de qualquer evento.
Prefiro usar o distanciamento
proposto por Eco quando me solicitam a análise de qualquer acontecimento ligado
aos seres humanos, seja uma greve geral e um protesto generalizado, como o que
está em andamento nesta sexta-feira, precedendo o fim de semana e o feriado do
Dia do Trabalho, seja um evento cultural.
No calor do momento, é fácil
deixar-se levar pela paixão, quando, na verdade, o intelectual e os homens
cultos em geral devem pautar-se por um possível domínio das paixões, como
ensinam os grandes filósofos, de São Tomás de Aquino a Nietzsche.
Sendo assim, procurando controlar
as possíveis paixões dominadoras, embora eu me encontre no calor do momento,
não posso ser nem contra nem a favor da greve geral de hoje. Não a apoio
porque, embora esteja em desacordo com boa parte das propostas de reforma do
atual governo, não posso simplesmente (e banalmente) julgar que a situação da
Previdência e das leis trabalhistas deva continuar como está.
Se nada for
feito, não é preciso ser um rei dos cálculos para concluir que não haverá dinheiro
nem para pagar as já exíguas aposentadorias do INSS. O que propor? Como
protestar sem paralisar as já caóticas metrópoles brasileiras?
A razão e o bom senso devem
mediar o ímpeto e a ação prática. Naturalmente, quando somos muito jovens, os
ímpetos são maiores, mas nem por isso devemos deixar de convidar os jovens à
razão. Não há como apostar no pior, que ainda está por vir, apenas porque não
concordamos com a legitimidade do presidente que aí está ou com a composição da
Câmara e do Senado, eleitos por um povo iludido e ansioso por justiça social.
À luz da razão, portanto, não há
sentido em protestar por protestar, atribuindo um caráter negativo a qualquer
ação ou proposta advinda do atual governo. Em poucas palavras, devemos evitar
na prática do cotidiano o uso da mentalidade do fanático, que se move apenas na
direção da defesa do ser idolatrado ou da causa única. Em vez de gritos
públicos e atos de vandalismo, por que não propor pacíficas assembleias
públicas em que, contendo e procurando dominar as paixões, os cidadãos comuns
tenham a oportunidade de expressar pacificamente, respeitando a fala e opinião
dos outros, a própria opinião?
Evidentemente, as discussões
públicas poderiam e deveriam ser incentivadas pelo próprio governo, em lugares
públicos adequados (escolas e teatros públicos, por exemplo), antes de qualquer
tentativa malandra de acordos políticos espúrios para a rápida aprovação de
propostas.
Há escolhas políticas erradas como as alianças feitas pelo
Governo Lula com os representantes mais retrógrados das elites brasileiras. Há
a conjuntura internacional, não devidamente avaliada, tanto no governo de FHC,
como nos governos de Lula (que menosprezou a crise econômica mundial) e de
Dilma. Enfim, há, sobretudo, uma descontinuidade nas tímidas políticas sociais
dos vários governos que se seguiram.
Só para fazer um exemplo, desde a
época dos militares, nos anos 60, e 70, as tentativas (infrutíferas e meramente
retóricas) de extirpar o analfabetismo e a miséria das regiões mais atrasadas
do país foram muitas e raramente tiveram sequência, sendo sempre sujeitas a
interesses locais e a clientelismos de todos os tipos.
A meu ver, trata-se de
uma situação que se perpetua no Brasil, acarretando prejuízos enormes, maiores
até do que os desvios de dinheiro público das quadrilhas de corruptos que estão
sempre à espreita e que realmente movimentam a economia, gerando inclusive
empregos!
Chegou, portanto, o momento de
rever os protestos automáticos contra qualquer medida ou proposta de reforma
vinda deste ou de qualquer outro governo. A greve geral mais desmobiliza do que
agrega, mais desfaz do que constrói.
As passeatas públicas, embora imbuídas de
espírito patriótico, facilmente se carnavalizam ou descambam para o vandalismo.
Mais do que apelos a boicotes, protestos nas ruas ou nas redes sociais,
precisamos urgentemente formar consciências.
Antes de protestar, portanto,
precisamos ler, ponderar, discutir, avaliando os prós e os contras, contendo as
paixões que nos levam apenas a enxergar no outro, seja o colega de trabalho,
seja o vizinho ou o Estado, o inimigo sempre disposto a nos enganar.
Sérgio Mauro é professor da
Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.
.
.